Um dos trabalhos realizados pela FEE ao longo dos últimos dois anos e considerado importante para um suposto grande prestígio da instituição junto à atual administração estadual foi o documento conhecido como "relatório da dívida". O esforço empreendido naquele trabalho teve por objetivo "analisar, do ponto de vista econômico, os termos do contrato de dívida fruto da renegociação feita junto à União em 1997". A questão é certamente central para os interesses do Rio Grande do Sul, pois a necessidade de transferir recursos à União em nome desse contrato tem sido apontada como uma das questões chaves para as dificuldades de equacionamento das finanças estaduais já há algum tempo.
Buscando sintetizar o argumento central do competente relatório, pode-se dizer que ele explicitava o problema da ausência de sincronia entre o comportamento do indexador estabelecido para o saldo total da dívida (IGP-DI) e o comportamento das receitas do RS, em termos nominais. Mais especificamente, argumenta-se que o IGP-DI é bem mais sensível ao câmbio do que as receitas tributárias do RS, de modo que os termos do contrato estabelecem um risco cambial significativo para a relação receitas/endividamento.
"Esse risco de mercado associado às flutuações cambiais faz com que a capacidade de pagamento dos estados se reduza a partir de condições macroeconômicas que fogem do controle do agente público estadual. Nesse sentido, se a dívida fosse indexada a um nível de preços ao consumidor, como o IPCA, o efeito seria bem menor, uma vez que o preço dos bens de consumo final oscila menos que o preço de commodities e produtos industrializados" (p. 24).
De modo simples: quando o câmbio nominal desvaloriza, este movimento se transfere rápida e fortemente para uma alta do IGP-DI e por esta via, para o saldo devedor do RS junto à União, sem que o mesmo movimento seja observado tão significativa e rapidamente nas receitas tributárias, em termos nominais. Desse modo a taxa de câmbio, uma variável que "foge do controle do agente público estadual" impacta fortemente a sua capacidade de cumprir aquele contrato. A sugestão dos autores do relatório para, senão resolver, ao menos minimizar o problema, seria modificar o indexador estabelecido no contrato, passando a utilizar-se o IPCA para corrigir o saldo devedor, ao invés do IGP-DI.
Avaliando esse diagnóstico e essa sugestão como estando de um modo geral corretos, cabe entretanto refletir sobre uma implicação bem menos explícita desse modo de pensar que embasa o referido relatório. Ela é essencial não só para uma análise mais ampla desta questão específica, como também para as condições estruturais e conjunturais que se apresentam para a economia e a sociedade do Rio Grande do Sul. Note-se que um dos pontos mais importantes da argumentação sintetizada acima, grifado na citação, é o fato de que há variáveis macroeconômicas envolvidas que “fogem do controle do agente público estadual”. Cabe observar, nesse particular, que a sugestão de trocar o indexador do IGP-DI para o IPCA, embora correta do ponto de vista de reduzir o risco cambial, não está relacionada a qualquer aumento do controle das variáveis macroeconômicas envolvidas. Trata-se tão somente de uma adequação dos termos do contrato visando tornar mais sincronizadas as correções do saldo devedor e as variações das receitas estaduais em termos nominais, ainda que o agente público estadual tenha tão pouco controle do IPCA quanto tem do IGP-DI.
Dito isto, cabe inverter o questionamento e perguntar: sobre quais variáveis macroeconômicas relevantes o agente público estadual tem controle significativo? Qual a sua capacidade real de intervenção sobre variáveis como a taxa de inflação, a taxa de crescimento econômico, a produção industrial, a taxa de desemprego, as exportações, as importações? O fato de que, concretamente, todas estas variáveis podem ser mensuradas de modo a retratar o que ocorre dentro do território chamado de Rio Grande do Sul, implica que a sua determinação esteja restrita ao que ocorre dentro desse território?
A resposta para esta última pergunta é obviamente negativa. O governo estadual tem capacidade extremamente limitada para controlar qualquer índice de preços, de produção, de emprego ou de comércio externo. Tais variáveis são determinados predominantemente por circunstâncias exógenas à esfera estadual. Portanto, não são só os termos do contrato de dívida, na forma estabelecida, que estão fora do controle da administração estadual. O funcionamento da economia real também está em enorme medida fora do controle do agente público estadual. Sendo assim, qualquer instituição de pesquisa que tentasse compreender o que ocorre com a economia e a sociedade do Rio Grande do Sul nunca pode partir do pressuposto de que isso possa ser feito sem considerar circunstâncias que são exógenas ao estado. Se é importante que haja um esforço de pesquisa para que o Rio Grande do Sul conheça as especificidades da sua estrutura econômica e social, como tem feito a FEE há 43 anos, isto em nada pode reduzir a importância de interpretá-las com base em uma compreensão correta dos seus principais determinantes, que não tem como ser apenas endógenos, mas também fortemente exógenos. Qualquer investigação que não levasse isso em conta seria extremamente limitada e contribuiria muito pouco para a compreensão da atual realidade econômica do RS e de suas dificuldades. Sinto-me repetitivo ao tratar deste ponto, mas a cada dia se renova a necessidade de voltar a reafirmá-lo. Mesmo aqueles que teimam em desconhecer as limitações da análise econômica por meio dos modelos neoclássicos de “equilíbrio geral” precisam reconhecer que não faz nenhum sentido pensar em termos de um “equilíbrio geral gaúcho”. Nosso glorioso estado é uma peça muito pequena rodando em meio a engrenagens econômicas e políticas muito maiores.