Não tenho dúvidas em me associar aos que comemoram o renovado interesse pela obra de Marx em tempos recentes. Diante dos rumos que tomou a discussão no evento promovido pela FEE na semana passada (mais uma vez organizado pelo Carlos Winckler) e do relato publicado pelo site Sul 21, penso ser importante entretanto fazer algumas observações.
1. De fato observa-se hoje uma relativa descrença em relação à abordagem ortodoxa em economia. Se isto vai acabar por reduzir significativamente a sua influência nos campos político e acadêmico, é uma questão totalmente aberta. De qualquer modo, penso que seria um erro substituir a abordagem neoclássica ortodoxa pela concepção de que tudo pode ser compreendido a partir de Marx. O relato do Sul 21 sobre a exposição do Prof. Eduardo Maldonado passa a idéia de que Marx seja imune a toda e qualquer crítica que já tenha sido feita. Isto é, no meu entendimento, um enorme exagero, especialmente quando se compreende Marx como um dos autores que contribuíram para a abordagem clássica do excedente, um campo de investigação que vem evoluindo ao longo de vários séculos por meio do debate, e desse modo a partir das críticas e contribuições de seus protagonistas.
2. É verdade que a publicação do livro "Produção de mercadorias por meio de mercadorias" de Sraffa em 1960 foi recebida com grande antipatia entre os marxistas. Penso que isto ocorreu porque a contribuição de Sraffa mostrou que um esquema teórico para os preços e a distribuição do excedente poderia ser estabelecido de modo logicamente coerente sem a necessidade de recorrer à teoria do valor-trabalho. Em termos gerais, dadas as condições técnicas de produção e a taxa de lucro, ficam determinados simultaneamente os preços relativos e o salário real. Sraffa mostrou ainda que, para dadas condições técnicas, há uma relação inversa entre a taxa de lucro e o salário real, configurando portanto um conflito distributivo pela apropriação do excedente. Os preços de produção, assim determinados, modificam-se a qualquer alteração distributiva e são, em geral, diferentes dos custos de produção relativos medidos em quantidades de trabalho, razão pela qual alguns autores passariam a afirmar que a teoria do valor de Marx seria logicamente inconsistente.
3. O fato, porém, de que a teoria do valor-trabalho não fornece uma medida exata dos preços de produção conforme o esquema definido por Sraffa não significa que não há nada para se aprender em Marx. Este tem um lugar de destaque entre os economistas políticos clássicos, por diversos motivos, dentre os quais seu esforço de recuperação da abordagem clássica do excedente, publicado em "Teorias da mais-valia", bem como sua ruptura com a "Lei de Say" ao considerar que na economia monetária o fluxo renda-gastos não se efetiva automaticamente, abrindo assim a "possibilidade das crises". A idéia, posteriormente desenvolvida por Kalecki, de que a dinâmica dos gastos capitalistas é fundamental para a demanda efetiva e portanto para o crescimento e as flutuações do produto tem origem nesta contribuição de Marx. Mesmo no contexto da teoria do valor e distribuição, o tratamento dado por Garegnani (1984) às formulações de Marx em nada levam a pensar que elas não sejam importantes. Ainda que mostre a referida incompatibilidade entre os custos medidos em quantidade de trabalho e os preços de produção, Garegnani busca mostrar como o procedimento de Marx pode ajudar a compreender a natureza deste problema teórico. De uma forma geral, a recuperação do princípio do excedente não invalida a idéia de exploração da força de trabalho, na medida em que concebe que a distribuição do excedente está sujeita à força relativa dos interesses de classe. Uma mudança distributiva em favor do capital pode ser interpretada como aumento do grau de exploração da força de trabalho.
4. Outro ponto que merece um esclarecimento diz respeito à crítica, mencionada pelo Prof. Maurício Coutinho, que afirma que no livro Sraffa não se trata de aspectos monetários, sendo esta uma limitação deste na relação com Marx. Ocorre que Sraffa buscava expor essencialmente as propriedades do assim chamado "núcleo" da abordagem do excedente (ver Garegnani, 1984). O fato de que neste núcleo não necessariamente estejam desenvolvidos aspectos monetários não quer dizer em absoluto que haja qualquer incompatibilidade entre a determinação da distribuição e preços relativos ali desenvolvida com as idéias mais promissoras em termos de representação dos sistemas monetários. A idéia de que a taxa de juros seja o instrumento essencial da política monetária (assumindo assim que quantidade de moeda seja endógena, ajustando-se às necessidades da circulação) tem sido inclusive discutida em termos da influência da autoridade monetária na determinação da taxa de lucro (ver por exemplo Lara, 2004, e Lara, 2008).
5. Por fim, um último comentário que me parece essencial. Penso que o Prof. Maldonado comete uma enorme injustiça ao sugerir que o programa de pesquisa originado em Sraffa (1960) concentre seus esforços apenas em apontar inconsistências lógicas em Marx, e que os pesquisadores hoje envolvidos ainda sejam os mesmos da década de 1970. Há diversos pesquisadores trabalhando na agenda de pesquisa estabelecida por Garegnani (1978/1979) visando compatibilizar no plano teórico o princípio da demanda efetiva e a abordagem clássica do valor e distribuição, bem como utilizar este quadro teórico na interpretação dos fenômenos econômicos concretos. Muitos trabalhos recentes podem ser acessados na página da Conferência Internacional Sraffa realizada em 2010, no site da Revista Circus sediada em Buenos Aires e na página do Prof. Franklin Serrano da UFRJ. Em minha forma de ver, os resultados deste programa de pesquisa são muito promissores, e têm permitido não só explicitar cada vez mais as deficiências da abordagem ortodoxa quanto contribuir de forma positiva para a interpretação dos processos de desenvolvimento econômico e a formulação de diretrizes de política econômica orientada para o desenvolvimento econômico. Uma excelente referência, bastante didática, para interessados nesta abordagem é o artigo "O desenvolvimento econômico e a abordagem clássica do excedente" de Franklin Serrano e Carlos Medeiros.
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