A criação deste blog teve por objetivo divulgar o trabalho do Núcleo de Estudos de Política Econômica (NEPE) da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul. As atividades do NEPE foram encerradas oficialmente em abril de 2018, por força de decreto do governo estadual do Rio Grande do Sul. As opiniões aqui expostas não refletem quaisquer posições oficiais desta instituição ou de qualquer outra, sendo de responsabilidade exclusiva do autor do blog. Neste momento o objetivo é contribuir para a preservação do patrimônio imaterial da FEE, bem como divulgar e avaliar criticamente as análises econômicas realizadas no Rio Grande do Sul.

9 de fev. de 2017

Previdência, sacrifício e taxa de juros

É notável a contundência com que o articulista da Folha de São Paulo conecta a proposta de desmonte da Previdência com uma suposta queda futura da taxa de juros no Brasil.

"O fato de destinarmos tantos recursos para a Previdência limita a capacidade do país de investir e desestimula a poupança. E, efetivamente, nossa poupança é muito menor do que a de países com a mesma renda per capita e a mesma demografia que o Brasil. Por outro lado, a baixa poupança está na raiz dos elevadíssimos juros. Assim, podemos estar seguros: se o Congresso Nacional aprovar o projeto de emenda constitucional enviado pelo governo, em alguns anos o juro cairá de forma sustentável. Será uma pequena revolução em nosso país" (Samuel Pessoa na FSP, em 05/02/2017).

Nosso economista acredita, portanto, que as alterações propostas para a previdência aumentarão a "poupança", e portanto a "oferta de capital" na economia brasileira. São necessárias apenas algumas semanas na faculdade de economia pra compreender as implicações apontadas pelo articulista para o aumento da "poupança". Basta aplicar o modelo de oferta e demanda ao "mercado de capital". Ao aumentar a "oferta de capital" isto determina imediatamente, dada taxa de juros, um excesso de oferta de capital em relação à demanda. Para alcançar o equilíbrio novamente, segue-se uma queda da taxa de juros. Na medida em que isso ocorre, o investimento aumenta e determina uma acumulação de capital mais rápida que eleva a intensidade de capital da economia. É curioso, entretanto, que estas certezas sejam hoje tão certezas não só para o nosso nobre economista aqui citado, como também para a maioria de seus colegas. Houve um tempo em que elas foram seriamente questionadas. 

"No modelo convencional, sucessivos sacrifícios de consumo e acumulação de bens de capital levam a taxas de juros progressivamente menores. Esta versão neoclássica convencional dos retornos decrescentes é enunciada detalhadamente em meu livro 'Economics'. Infelizmente, antes que o 'reswitching' me alertasse para a complexidade do processo, eu não havia percebido que o raciocínio convencional representa apenas um de dois possíveis resultados. No caso da tecnologia da Figura II, a história pode ser invertida: sacrificar consumo presente e acumular bens de capital poe levar a um novo equilíbrio com uma taxa de juros mais alta!" (Paul Samuelson, 1966, p. 579).

"But, in the conventional model sucessive sacrifices of consumption and accumulations of capital goods lead to lower and lower interest rates. This conventional neoclassical version of diminishing returns is spelled out at lenght in my "Economics". Unfortunately, until reswiching had alert me to the complexity of the process, I had not realized that the conventional account represents only one of the two possible outcomes. When we are in Figure II technology, the story can be reversed: after sacrificing present consumption and acumulatin capital goods, the new steady-state equilibrium can represent a rise in the interest rate!" (Paul Samuelson, 1966, p. 579)

Nessa passagem, Samuelson admite que os mecanismos envolvidos entre o sacrifício do consumo, a acumulação de capital e a queda da taxa de juros são bem mais "complexos" do que o raciocínio neoclássico tradicional sugere. Na verdade, são tão complexos que inviabilizam logicamente o princípio de que cada fator de produção recebe o equivalente à sua produtividade marginal. Haveria muito mais a ser dito a respeito do que tenho energia para dizer agora. Muito já foi escrito e dito sobre esse assunto. Uma das referências mais atuais e completas é esta tese de doutorado do Andrés Lazzarini onde se discute, por exemplo, as deficiências das constatações do próprio Samuelson (1966), que procura minimizar a profundidade daquelas "complexidades" por ele mesmo admitidas.

Ao longo dos anos 1960 e 1970, na medida em que ficava claro que o debate colocava em questão a abordagem neoclássica como um todo, as dificuldades teóricas envolvidas no equilíbrio dos mercados de fatores (requisito inescapável para a determinação do equilíbrio geral) passariam a ser solenemente ignoradas, ao invés de discutidas. Não consta, por exemplo, que o próprio Samuelson tenha modificado seu livro "Economics" depois de perceber que não era bem aquilo que ele havia "enunciado detalhadamente". A determinação neoclássica dos "preços dos fatores" é hoje um tópico precariamente discutido nas faculdades de economia, mesmo a nível de pós-graduação. Tenho plena consciência de que meus esforços como professor de história do pensamento econômico são insignificantes diante desse contexto, ainda que seja bem divertido lidar com o espanto dos alunos e colegas economistas diante dos muitos possíveis desdobramentos daquelas dificuldades.

Mas a parte bem pouco divertida é que as "conclusões" derivadas do raciocínio tradicional seguem sendo tomadas como verdade científica nos "debates" de natureza política como este que se coloca sobre a previdência no Brasil. Ainda que mesmo um neoclássico consagrado como Samuelson tenha demonstrado ceticismo sobre o mecanismo teórico envolvido, os economistas ortodoxos hoje não demonstram nenhum receio ao afirmar que aumentar o "sacrifício" terá como consequência reduzir a taxa de juros no Brasil. E isso por uma simples razão: se não funcionar, inventa-se outra história mais "nova". Ninguém dá bola para estes textos "velhos" mesmo.

Referências

Samuelson. P. Summing up. Quarterly Journal of Economics, 1966, p. 568-583.

Lazzarini, A. Capital theory debates: current relevance of the Cambridge controversies: A historical and analytical overview. Tese de doutorado. Università degli Studi Roma Tre, 2008.