Sai amanhã no Jornal do Comércio este breve artigo que reproduzo aqui, a respeito do acordo estabelecido esta semana no congresso norte-americano. Pela falta de espaço, não pude explorar as importantes diferenças que existem entre os agentes privados e os governos, mesmo dos países periféricos. Os tesouros nacionais e as autoridades monetárias desfrutam do mesmo privilégio que os Estados Unidos, de não terem risco de default, porém restritos à sua própria moeda. Feita esta ressalva acho que consegui passar a mensagem.
As melhores análises que li sobre este mesmo tema foram os artigos de Delfim Neto e de Mark Weisbrot. O primeiro apresenta números que mostram a irrelevância da discussão do ponto de vista da demanda pelos títulos norte-americanos.
"A demanda global dos papéis de vencimento em 30 dias, com relação ao nível de corte do Fed, foi de 5,3 vezes (para cada US$ 1 bilhão vendidos apresentaram-se potenciais compradores de US$ 5,3 bilhões). Nas quatro semanas de julho o Fed vendeu US$ 102 bilhões de papéis com vencimento de 30 dias. As demandas sempre foram mais do que 4,5 vezes o montante vendido, com taxa de juro media inferior a 0,06%. No mesmo mês, o Fed colocou mais de US$ 330 bilhões de papéis com vencimentos entre 30 e 720 dias (contra uma demanda superior a US$ 1,2 trilhão) com suas respectivas taxas de juros praticamente inalteradas. Esses números não parecem revelar qualquer angústia maior do "mercado" da dívida pública com a possibilidade de um 'default'" (Delfim Neto no Jornal Valor em 02 de agosto).
Já a artigo do Weisbrot pode ser acessado por
este link.
O teto da dívida norte-americana e a assimetria no sistema monetário internacional
O recente debate no Congresso norte-americano sobre o aumento do teto da dívida desse país permite observar-se uma importante característica do sistema monetário internacional vigente: a assimetria que caracteriza a posição dos Estados Unidos frente a todos os demais países. Como bem sabe o leitor, qualquer agente econômico que tenha um estoque de dívida em crescimento precisa contar com a concordância de seus credores para refinanciar seus débitos, ou, alternativamente, encontrar novos credores dispostos a conceder-lhe novos empréstimos. Ainda que, em determinados casos, as discussões “domésticas” (no interior de uma família, de uma empresa ou mesmo de uma nação, como no caso do Congresso norte-americano) possam ser importantes, a decisão de aumentar o estoque de dívida só será efetivamente posta em prática se houver emprestadores interessados. No caso das dificuldades do Brasil com sua dívida externa nos anos 80, por exemplo, não foram poucas as vezes em que foi necessário recorrer a linhas de crédito do Fundo Monetário Internacional. Os recursos do Fundo eram liberados, entretanto, mediante a imposição de pesadas condicionalidades sobre a gestão da política macroeconômica. Algo semelhante está ocorrendo neste momento com países como a Grécia, fortemente pressionada, por seus credores internacionais, a executar um pesado ajuste recessivo.
No caso norte-americano, entretanto, tal situação não se verifica. A decisão de elevar o teto da dívida foi tomada a partir de um acordo que envolveu atores do cenário político doméstico e ocorreu quando os dois grandes partidos chegaram a um termo comum. Em nenhum momento, houve qualquer preocupação com a existência ou não de interessados em conceder novos empréstimos, nem qualquer análise de condições impostas pelos credores. A aparente obviedade de que só se pode tomar recursos emprestados caso haja concordância do emprestador não se aplica quando o devedor em questão é o Tesouro norte-americano. Isto porque, na atual configuração do sistema monetário internacional, em que o dólar é a moeda inconversível de referência, os títulos da dívida norte-americana são demandados pelos Bancos Centrais de todo o mundo enquanto ativos de reserva. Apesar de os Estados Unidos registrarem, há muitos anos, significativos déficits em transações correntes, seus títulos seguem sendo o ativo de menor risco de todo o sistema, e os referidos déficits externos norte-americanos são automaticamente financiados pelos países superavitários. Nem mesmo o serviço dessa crescente dívida norte-americana constitui grande problema, uma vez que as taxas de juros são próximas a zero em termos nominais.
Essa brutal assimetria entre os Estados Unidos e os demais países no que diz respeito ao ajuste de suas contas externas é, na verdade, um dos reflexos da supremacia econômica e militar daquele país diante do resto do mundo. A quase completa preponderância das forças políticas domésticas para a resolução da questão do teto da dívida não significa, entretanto, que o acordo não vá ter suas consequências para os Estados Unidos e para o mundo. Ao lado do maior espaço de endividamento, ficaram acertados cortes de gastos públicos. É difícil dizer se tais cortes derivam dos sempre influentes diagnósticos ortodoxos ou, simplesmente, do cálculo político dos republicanos. Provavelmente de ambos. De qualquer modo, caso os cortes tornem-se efetivos, será ainda mais difícil para retomar o crescimento econômico nos Estados Unidos. Diante dos elevados níveis de desemprego que vêm sendo registrados após a crise financeira de 2008, tal cenário deverá reduzir as possibilidades de reeleição de Obama.