[Postei esse texto há algumas semanas no Facebook. Muita gente curtiu então reproduzo aqui]
Nesta semana foi extremamente frustrante perceber que alguns colegas economistas pelos quais tenho profundo respeito associam Adam Smith e David Ricardo aos economistas ortodoxos que andam por aí dando sustentação às draconianas mudanças legislativas propostas pelo governo ilegítimo. Isto deriva da enorme difusão (mesmo entre heterodoxos) de uma leitura equivocada da história do pensamento econômico que oculta os aspectos essenciais da abordagem clássica do excedente, reinterpretando Smith e Ricardo como precursores imperfeitos de um ou outro aspecto da abordagem marginalista ortodoxa. Esse processo de "limpar" Ricardo e construir uma caricatura do seu pensamento, que depois viria a ser "integrada" à abordagem marginalista, começou logo depois da sua morte em 1823. Quem primeiro contou essa história foi Marx, verificando que naquela década de 1820-30" a luta de classes, prática e teoricamente, assumiu forma cada vez mais declarada e ameaçadora". Foi neste contexto que "soou o dobre fúnebre da economia científica burguesa" e em que "não se postulava mais a questão de saber se tal ou qual teorema era verdadeiro, mas se era útil ou prejudicial aos capitais, conveniente ou inconveniente. O lugar dos investigadores imparciais foi tomado pelos lutadores alugados; em lugar de pesquisa científica autêntica, a consciência pesada e as intenções malignas da apologética".
Em seu livro "Economia e Ideologia", Ronald Meek discute o "declínio da economia ricardiana na Inglaterra" e ali se pode ter a dimensão da "força e vigor e a virtual universalidade das primeiras reações contra Ricardo" logo após a sua morte. A preocupação geral era com a possibilidade de uma difusão generalizada de alguns aspectos daquela abordagem, a partir da ação de alguns ricardianos "radicais". Segundo Meek "... a maioria dos economistas percebia claramente o uso perigoso que escritores radicais davam a alguns conceitos ricardianos. Na medida em que os argumentos radicais eram aproveitados pelo movimento trabalhista, a reivindicação a todo o produto do trabalho - ou mesmo à maior parte dele - parecia um monstruoso ataque aos próprios alicerces da sociedade civilizada".
O economista americano Thomas Cooper escreveu: "As modernas noções de economia política entre os operários e mecânicos foram expostas, embora não muito claramente, por Thomas Hodgskin, no seu trabalho sobre Popular Political Economy... Se tais são as propostas que os mecânicos, agindo em seu conjunto, devem pôr em execução, é mais do que oportuno que se aliem os que têm propriedades a perder e famílias a proteger". O "temor do nivelamento" sobre a economia política ricardiana era, portanto, uma realidade. Baseados nesta noção do perigo que o nivelamento do conhecimento sobre a economia política ricardiana poderia representar para as classes proprietárias, os "lutadores alugados" a que se refere Marx voltavam suas baterias para a desconstrução dos elementos "perigosos" da obra de Ricardo, por meio de um "esforço para expor tantas teorias apologéticas do lucro quanto possível, não importando se eram coerentes ou não". "Não é injusto, pensamos nós, dizer que economistas como Scrope, Read e Longfield tendiam em graus variáveis para a opinião de que se uma doutrina 'inculcava princípios perniciosos', se negava que a riqueza sob a ocorrência livre devia caber aos seus 'justos' proprietários, ou se podia interpretar-se de modo a impugnar os motivos ou capacidade do Todo-Poderoso, ela devia ser necessariamente falsa. O método de abordagem básico por êles utilizado, em outras palavras, era determinado pela convicção de que o socialmente perigoso não podia, em hipótese alguma, ser verdadeiro".
O movimento foi extremamente bem sucedido pois ao final da década a concepção geral sobre a economia ricardiana já era completamente outra. "Em princípios da década de 1830, ouviram-se sugestões gerais de que a experiência industrial havia comprovado ser falsa a teoria ricardiana da relação inversa entre salários e lucros ... Os conceitos ricardianos do valor corporificado no trabalho, e do lucro como uma espécie de mais-valia, que se mostrara útil aos radicais, figuraram entre os primeiros a serem reformulados ou rejeitados". Neste contexto "explicou-se o lucro não como resultado de algo que o trabalhador fazia, mas como consequência e recompensa de algo por que era responsável o capitalista ou o capital. John Stuart Mill, crescendo na atmosfera revisionista, nenhuma dificuldade encontrou em incorporar o conceito de abstinência de Senior ao seu sistema ...". "O sistema de Ricardo, em resumo, foi expungido da maioria dos elementos mais obviamente desarmoniosos, especialmente os que poderiam ter sido usados para sugerir a existência de um real conflito de interesses econômicos entre as classes sociais sob o capitalismo ou que o progresso sob o sistema poderia ser limitado por qualquer outra razão".
Dessa forma é muito interessante que o debate econômico hoje tenha tantas semelhanças com essa situação: pouco importa se os argumentos são válidos ou não, o que importa é que estejam defendendo o lado vencedor. Pouco importa que a previsão feita ontem pelo economista ortodoxo não tenha se concretizado, pois ele terá hoje e amanhã novo espaço na mídia para desfilar mais teses furadas quando confrontadas com a realidade, mas que são extremamente úteis para seus financiadores. E também é muito irônico que colegas economistas claramente posicionados do outro lado, efetivamente preocupados com os efeitos nada neutros dos últimos movimentos legislativos no Brasil, ataquem os “lutadores alugados” de hoje associando-os à caricatura de Ricardo que resultou exatamente de um processo parecido no século XIX.
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