Um parente distante meu escreveu o artigo "Estabilização e reforma: 1964-1967", publicado no famoso livro "A ordem do progresso". O texto trata da política econômica executada pelo primeiro governo autoritário pós-1964:
“Os pilares do PAEG e da política desinflacionária dos primeiros governos pós-1964 foram, sem dúvida, a política salarial e as reformas institucionais. Para contornar as ineficiências e as restrições percebidas como existentes no mercado de trabalho, o programa desinflacionário do PAEG substituiu a negociação dos salários pela fórmula oficial do reajuste. Dessa forma ... foi possível fazer diretamente aquilo que a ortodoxia pretende conseguir através da recessão e do desemprego: solucionar o impasse distributivo através da redução da parcela salarial” (Lara Resende, 1990, p. 229).
Como é natural, elementos retóricos associados à melhora da "eficiência" ou algo similar deverão estar presentes no discurso de qualquer governo que busca implementar uma política cuja orientação seja conter ou reverter demandas distributivas. O governo se vê na necessidade, mesmo em um regime autoritário, senão de ocultar os reais efeitos daquela política perante a opinião pública, pelo menos tentar fazer crer que constituem um "custo" a pagar em função de algum "benefício" futuro. Colocando-se nestes termos de "benefícios" e "custos", os efeitos reais da política já ficam bem menos nítidos para o senso comum. Pois mesmo que fique claro se os "benefícios" projetados foram ou não efetivamente alcançados, o que já não é fácil de ocorrer, poucos terão interesse e/ou meios para saber se os "custos" projetados foram subestimados ou superestimados pelos formuladores da política.
No caso daqueles primeiros anos do período autoritário, os "custos" em termos de uma maior desigualdade da distribuição foram notáveis, conforme observou o próprio Lara Resende: “O nível de salário real restabelecido pelo reajuste, portanto, também era reduzido: em dezembro de 1964, o índice de salário mínimo real era 126; em março de 1965, por ocasião do primeiro reajuste pela fórmula, este índice baixou para 103; em março de 1966 foi reduzido para 91 em março de 1967 sofreu nova redução para 83” (p. 217). “A participação na renda total dos 50% mais pobres reduziu-se de 17,7 para 14,9% e a dos 30% seguintes de 27,9 para 22,8%” (p. 229-230).
Portanto, foi possível para o primeiro governo pós-1964 solucionar o impasse distributivo por meio da redução da parcela salarial. O fechamento político de 1964 permitiu àquele governo buscar alcançar esse objetivo por uma estratégia mais tecnoburocrática (regra de reajuste salarial que determinava perdas reais de salários). Ao considerá-la compatível inclusive com a preocupação de manter algum crescimento econômico, Lara Resende qualifica esta alternativa como uma política que estaria "além da ortodoxia".
Trazendo a atenção para 2015-2016, entretanto é importante perceber que aquele mesmo objetivo nada progressista vem sendo perseguido muito claramente pela política ortodoxa que promove a recessão e o desemprego, ao lado das "reformas estruturais" que visam o corte de gastos sociais, o desmonte do Estado e a reversão de direitos trabalhistas. Não se trata, como tenta fazer parecer a retórica governista, de uma estratégia para retomar o crescimento. É uma estratégia que precisa, ao contrário, bloquear o crescimento da produção e do emprego por algum tempo. Dessa forma fragiliza o poder de barganha dos assalariados tanto do setor privado quanto de algumas categorias do setor público. Força, por esta via, uma solução distributiva que permita aos moradores do andar de cima restaurarem aquela distância em relação ao andar de baixo com a qual estava habituados, antes que ela passasse a ser reduzida, da metade para diante dos anos 2000.
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