A criação deste blog teve por objetivo divulgar o trabalho do Núcleo de Estudos de Política Econômica (NEPE) da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul. As atividades do NEPE foram encerradas oficialmente em abril de 2018, por força de decreto do governo estadual do Rio Grande do Sul. As opiniões aqui expostas não refletem quaisquer posições oficiais desta instituição ou de qualquer outra, sendo de responsabilidade exclusiva do autor do blog. Neste momento o objetivo é contribuir para a preservação do patrimônio imaterial da FEE, bem como divulgar e avaliar criticamente as análises econômicas realizadas no Rio Grande do Sul.

4 de dez. de 2017

Crédito e gasto privado no Brasil: da recessão à lenta recuperação

Fernando Maccari Lara & Bruno Paim

O artigo apresenta uma avaliação conjuntural sobre as circunstâncias relativas ao mercado de crédito no Brasil, buscando compreendê-las do ponto de vista da sua influência para o gasto privado e a demanda efetiva. Os dados sobre os estoques de crédito para pessoas físicas e jurídicas fornecem importantes evidências sobre o processo recessivo recente e a lenta recuperação do gasto privado. Compreende-se que as decisões de gastos privados podem ser influenciadas pela política monetária, mas de modo algum que os condicionantes dessas decisões se resumam aos efeitos da política monetária que define a taxa básica de juros. Com base no quadro conceitual e teórico utilizado, a redução da taxa básica de juros tem limitações importantes enquanto instrumento capaz de recuperar o gasto privado.

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30 de out. de 2017

Conjuntura macroeconômica e finanças municipais

Concedi esta entrevista uns tempos atrás para o jornalista Marcelo Fiori do Jornal Ibiá de Montenegro/RS.

Qual o peso da crise econômica nos resultados do IFGF? Os prefeitos merecem uma colher de chá devido ao cenário nacional? Ou eles poderiam ter contornado a situação se fossem gestores eficientes?

Não resta dúvida que o cenário recessivo tem reflexos nas finanças públicas a nível federal, estadual e municipal. O próprio documento da FIRJAN que apresenta os resultados relativos a 2016 refere que a análise tem como pano de fundo uma crise fiscal generalizada. "Dos 4.544 municípios analisados, 3.905 (85,9%) apresentaram situação fiscal difícil ou crítica (Conceito C ou D no IFGF), apenas 13,8% (626) boa situação fiscal (Conceito B) e tão somente 13 (0,3%) excelente situação fiscal (Conceito A). Assim, 2016 foi o ano com o maior percentual de prefeituras em situação fiscal difícil e com o menor número em situação excelente de toda a série do IFGF, iniciada em 2006" (p. 16). Salvo portanto casos muito especiais, a atual crise não é de apenas um município mas do conjunto dos entes federados. Outro aspecto importantes apontado pelo estudo é a a elevada dependência das transferências intergovernamentais nas receitas dos municípios, que implica reduzido controle sobre as próprias receitas. Assim, ainda que sempre haja espaço para os municípios beneficiarem-se de uma gestão eficiente, o cenário macroeconômico encontra-se bastante desfavorável no momento e condiciona muito fortemente as possibilidades para os gestores municipais em geral.
  
Quais as suas hipóteses para as notas de Montenegro terem baixado gradativamente nos últimos 10 anos neste estudo?

Observando a evolução dos indicadores que compõem o índice sintético do município de Montenegro, o dado que me parece mais negativo é aquele relativo á evolução dos investimentos. Os municípios em geral, e me parece deve ser também o caso de Montenegro, ainda estão longe de conseguirem oferecer serviços adequados à população. As restrições de natureza fiscal, entretanto, têm criado enormes obstáculos para que sigam sendo realizados investimentos públicos suficientes para evoluir nessa direção. No caso específico do resultado relativo a Montenegro, outro elemento que parece influenciar bastante no resultado é o fato de que em dois anos recentes (2013 e 2016) o indicador de liquidez registrou pontuação zero. De acordo com a metodologia usada pela FIRJAN isso ocorre "caso o município inscreva mais restos a pagar do que recursos em Caixa no ano em questão". Portanto a ocorrência desse fato nesses dois anos citados implicou em pontuação zero para este indicador, com impacto negativo sobre a pontuação geral. Mas, novamente, não me parece tratar-se de algo localizado em Montenegro já que, segundo o estudo, foram 715 municípios (15,7%) encerrando 2016 sem caixa para cobrir restos a pagar deixados, ficando também com pontuação zero no IFGF Liquidez. Então é bastante possível que seja algo motivado pelas dificuldades gerais apontadas anteriormente.

Por que o poder público no Brasil, mesmo cobrando altos impostos da população, não consegue investir e tampouco manter os serviços em níveis ao menos satisfatórios?

A percepção da população de que paga uma elevada carga de impostos tem sido agravada pela recessão, pelo elevado desemprego e pela queda do poder de compra dos salários. Entretanto, é preciso observar que, como é absolutamente normal e esperado num cenário recessivo como o dos últimos dois ou três anos, a arrecadação de impostos vem se contraindo fortemente em termos reais. Este componente é fundamental para entender as origens da própria crise, ainda que não venha sendo adequadamente levado em conta no debate público. A contração da produção, do emprego e dos lucros absolutos das empresas causa redução do valor real dos impostos arrecadados, ao mesmo tempo em que às administrações públicas cabe seguir prestando os serviços à população. Há que se observar, inclusive, que na medida em que a União, Estados e Municípios sigam realizando adequadamente suas funções, portanto realizando os pagamentos associados a tais atividades, uma parcela importante do setor privado também segue mantendo suas receitas e a atividade econômica em geral. Historicamente, o setor público atuou como um elemento que atenua as contrações econômicas. Atualmente, o setor público brasileiro vem contribuindo para o aprofundamento da crise. A disciplina fiscal que é imposta pela União aos Estados e Municípios tem levado os gestores públicos a parcelar salários, adiar pagamentos a fornecedores e outras medidas que acabam por reduzir as receitas do setor privado, contribuindo para o aprofundamento da recessão e a demora na recuperação. Nesse sentido, discordo da interpretação do documento da FIRJAN que atribui como principal causa daquilo que chama de uma "crise estrutural" nas finanças públicas seja o fato de que os orçamentos estejam "engessados" com despesas obrigatórias. As despesas obrigatórias refletem em grande medida a necessidade de dar conta das atribuições constitucionais dos entes federados, para o que é preciso que eles encontrem o financiamento adequado. Para tanto, é necessário que se recupere a atividade econômica.

Qual o “tema de casa” da Administração Municipal para melhorar a nota no Índice Firjan nos próximos anos? E qual o papel do cidadão montenegrino nesse processo?

O papel do cidadão me parece ser de fato acompanhar estudos como os realizados pela FIRJAN para conhecer melhor os mecanismos de financiamento das estruturas municipais, estaduais e federais, mas compreendendo que a questão não envolve apenas aspectos econômicos, mas também e sobretudo políticos. Ao invés de uma disputa do tipo "guerra fiscal" em que os municípios concorrem para oferecer vantagens tributárias a atrair investimentos, o ideal em meu ponto de vista seria realizar essa disputa sob uma outra lógica. Os municípios precisariam concorrer no oferecimento de melhores serviços para sua população, dentro das suas atribuições constitucionais relativas à saúde, transporte urbano,  ordenamento territorial, etc. Dessa forma estariam criando um ambiente propício à atividade econômica privada, ao financiamento da estrutura pública e à prestação de serviços à população. Desse ponto de vista, o cidadão deve ficar atento às informações disponíveis e ao processo político, elegendo representantes que não só façam boa gestão dos recursos disponíveis mas que também atuem na esfera política e federativa para buscar uma divisão mais adequada das receitas e uma gestão macroeconômica que permita o crescimento da atividade econômica. Dessa forma é que se pode projetar o adequado financiamento dos municípios para cumprirem seu seu papel constitucional.

O estudo mostra que a maioria das prefeituras sacrificou os investimentos em 2016, mesmo sendo ano eleição, quando normalmente o valor sobe. Em Montenegro, as notas deste indicador são críticas desde 2013 (com exceção de 2015, ocasião em que despiorou, com nota 0,53). Quais as causas disso e como reverter o quadro?

Este dado é bastante interessante e de fato vem ao encontro do que mencionei acima. Me parece que as causas deste movimento estão na orientação geral da política econômica que implica a necessidade dos municípios de cortarem despesas frente às dificuldades orçamentárias impostas pela desaceleração da atividade econômica que se verifica desde 2011 e pela recessão a partir de 2015. Mas reitero que me parece haver uma clara inversão de valores quando se interpreta a necessidade de cortes de investimentos e os problemas de liquidez dos municípios como decorrentes de "orçamentos cada vez mais engessados por despesas obrigatórias". Não se pode negar que em muitos casos haja espaço para uma melhor gestão dos recursos públicos, mas a existência de despesas obrigatórias está ligada exatamente à garantia de que os serviços essenciais sejam efetivamente prestados à população. Conforme observei acima, a manutenção dos fluxos de pagamentos da administração pública é um fator que ajuda a atenuar a recessão pois mantém em alguma medida as receitas do setor privado e a atividade econômica. "Em momentos de queda da receita, como o atual, há pouca margem de manobra para adequar as despesas à capacidade de arrecadação, deixando as contas públicas extremamente expostas à conjuntura econômica" Se as despesas públicas fossem cortadas sempre na mesma magnitude das flutuações das receitas públicas, haveria não só consequencias graves do ponto de vista social (basta pensar na interrupção dos serviços de saúde) como também as flutuações do nível de atividade seriam ainda mais exacerbadas, e não menos. Dessa forma, interpretar a obrigatoriedade das despesas como o problema de fundo me parece uma compreensão equivocada da questão. O problema de fundo me parece ser a recessão e uma gestão macroeconômica que não tem ajudado na recuperação da atividade econômica. 

11 de jul. de 2017

Investigação empírica sobre flutuações econômicas

Depois de mencionar um tal "barômetro", experimento estatístico realizado nos EUA pelos anos da grande recessão, escreveu o economista Jan Tinbergen:

"Nada disto, entretanto, tinha fundamento na teoria. Surgiu, portanto, a necessidade de se construir um modelo da formação das ondas cíclicas baseado na teoria e, ao mesmo tempo, testado pela experiência prática. Os primeiros modelos deste tipo foram publicados em 1936 ... várias obras apareceram, apresentando muitas e variadas versões de modelos econométricos do movimento cíclico. Esses modelos econométricos eram caracterizados, primordialmente, pelo fato de que: (1) foi formada uma lista das variáveis existentes no modelo, (2) foi formada uma lista de equações que expressavam as relações entre essas variáveis, e (3) os coeficientes dessas equações foram obtidos por verificação estatística das observações em que o objetivo era conseguir-se o mais alto grau de conformidade possível entre a realidade e a teoria. A utilidade desses modelos pode ser percebida, de um lado, pela compreensão que proporcionaram das forças que desempenhavam um papel mais importante no movimento cíclico e, por outro, pela oportunidade que ofereciam de se prever o desenvolvimento econômico no curto prazo. Tornou-se, assim, evidente que um papel central nas flutuações econômicas cabia à procura de bens e serviços, procura esta que se pode considerar composta da procura de bens de consumo e da procura por bens de investimento, cada qual dividida entre procura pública e privada" (Tinbergen, 1967, Desenvolvimento planejado, p. 204).

Hoje em dia parece ser tarefa bem mais difícil para os economistas tradicionais admitir que são os gastos que determinam o produto. Muitos tem que fazer uma ginástica intelectual enorme para lidar com a questão. E muitos heterodoxos também não demonstram muita clareza, infelizmente.

7 de jul. de 2017

Paradoxo da parcimônia

O que mais se ouve por aí da parte dos economistas é o mantra de que "tem que aumentar a poupança". Digamos que ok mas, como se poderia chegar a esse resultado? Reduzindo os gastos?


O gráfico mostra uma redução do consumo autônomo (que corresponde ao aumento da poupança autônoma). Este movimento tem efeito recessivo sobre o produto e a renda. Se o nível do investimento estiver associado positivamente ao nível de produto, um aumento autônomo da poupança acaba resultando em queda do investimento e também da poupança total.

Portanto, para aumentar a poupança total seria preciso elevar os gastos autônomos, estimulando o aumento do produto e induzindo um nível maior de investimento. Dessa forma é que resultará um nível maior de poupança.

Referência: Shapiro (1975). Análise macreoconômica. p. 326.

22 de mai. de 2017

Entrevista ao Sul 21

Abaixo a íntegra da entrevista respondida à Fernanda Canofre (Sul 21)

Qual o impacto que a permanência de Temer no Planalto pode ter no mercado?

Qualquer incerteza política dessa natureza tem sempre potencial de gerar instabilidade nos mercados acionários e de câmbio. As análises econômicas da grande mídia buscam sempre explicitar eventuais perdas patrimoniais das empresas ou de parte específica da população como perdas "do país". Entretanto, essa relação nada tem de trivial pois, para aquela grande parcela da população que não detém ativos financeiros nem estoques de moeda estrangeira, os verdadeiros impactos são bem mais indiretos e menos explícitos. Por exemplo, uma consequência comum e importante destes eventos é a desvalorização da taxa de câmbio nominal (aumento do "dólar"). De forma bastante sistemática as desvalorizações cambiais permanentes (ou seja, que não sejam revertidas logo em seguida) transformam-se em choque inflacionário. Foi o que houve, por exemplo, em 2015. Naquela oportunidade, em conjunto com um choque de preços administrados e uma deterioração das condições do mercado de trabalho, seguiu-se uma forte perda de poder compra dos rendimentos dos assalariados. Nas atuais condições do mercado de trabalho, perdas consideráveis desta natureza também podem ser esperados de uma desvalorização permanente da taxa de câmbio.

Temer sempre bateu na recuperação da economia como legado de seu governo. Ele usou isso inclusive no discurso de ontem dizendo que ficaria no cargo. Qual a avaliação dessas políticas? O cenário era mesmo otimista antes do escândalo JBS?

Apesar do discurso oficial de que o objetivo seja a recuperação do crescimento e da geração de empregos, a política econômica executada no período Temer não difere em essência daquela que era praticada já desde o início do segundo mandato da presidente Dilma. Em minha avaliação, esta orientação de política defendida pela ampla maioria dos economistas e pelos grandes veículos de mídia vem sendo, ao contrário, um elemento central para a profundidade e a duração da recessão que hoje vivenciamos. A ideia de que uma política econômica pautada por "austeridade" melhora a confiança dos mercados e remedia todos os males domina a agenda do governo desde 2015, ainda com Dilma. Com Temer, ela evoluiu para reformas que visam de um modo geral desarticular o sistema atual de previdência e a legislação trabalhista. O cenário otimista criado desde o impeachment já vinha sendo desafiado pelos fatos concretos ao longo do ano passado. Nas últimas semanas, havia uma nova tentativa de exaltar alguns indicadores relativamente positivos para, uma vez mais, recriar aquele cenário. Em diversos trabalhos recentes do Núcleo de Estudos de Política Econômica da FEE, apontamos que estas expectativas otimistas não tinham base concreta pois o crescimento econômico e a geração de empregos só poderão voltar na medida em que os componentes da demanda agregada voltarem a crescer. Não há absolutamente nada na orientação de política adotada nem nas reformas desejadas pelo governo que aponte para este resultado.

Hoje, em reunião promovida pelo banco Santander, o presidente do Banco Central disse que o país tem "amortecedores robustos" para enfrentar a crise. O que significa isso? A afirmação se confirma?

Não sei exatamente qual o contexto da declaração mas, de fato, um aspecto muito importante no atual momento é que o Brasil detém um grande volume de reservas internacionais. Isto permite ao Banco Central administrar de forma bem mais tranquila as turbulências nos mercados financeiros, sejam elas geradas por eventos externos, como no caso do período 2008-2009, ou por instabilidade política interna, como é o caso agora. Este aspecto é extremamente importante para compreender que as razões para o atual cenário de recessão não estão relacionadas com dificuldades para lidar com as restrições de natureza externa, como em muitos episódios no passado. As raízes da situação atual parecem ser predominantemente internas e decorrentes da orientação de política adotada.

Qual a melhor solução daqui pra frente?

Trata-se de uma pergunta extremamente complicada de responder porque, como em qualquer situação, não pode haver qualquer solução estritamente "técnica" capaz de satisfazer os diferentes e conflitantes interesses em disputa. Na instabilidade dos últimos dias, verifica-se que alguns setores que davam sustentação política ao governo Temer deixaram de fazê-lo principalmente porque não acreditam mais em sua capacidade de levar adiante as reformas que consideram urgentes e prioritárias. Caindo Temer, buscarão outras lideranças para levar adiante e/ou aprofundar seus projetos. Para permanecer, Temer terá que provar que ainda é capaz de ser o representante do projeto neoliberal. No pólo popular, chega a ser impressionante a fragmentação e a inoperância da representação política no sentido de conter o avanço já logrado por aquele projeto. A pauta da eleição direta antecipada tem potencial de reaglutinação de parte dessas forças, mas o Congresso Nacional tem se mostrado um tanto insensível às demandas populares.

Leia a matéria em:

http://www.sul21.com.br/jornal/como-fica-economia-brasileira-enquanto-temer-segue-no-planalto/

9 de fev. de 2017

Previdência, sacrifício e taxa de juros

É notável a contundência com que o articulista da Folha de São Paulo conecta a proposta de desmonte da Previdência com uma suposta queda futura da taxa de juros no Brasil.

"O fato de destinarmos tantos recursos para a Previdência limita a capacidade do país de investir e desestimula a poupança. E, efetivamente, nossa poupança é muito menor do que a de países com a mesma renda per capita e a mesma demografia que o Brasil. Por outro lado, a baixa poupança está na raiz dos elevadíssimos juros. Assim, podemos estar seguros: se o Congresso Nacional aprovar o projeto de emenda constitucional enviado pelo governo, em alguns anos o juro cairá de forma sustentável. Será uma pequena revolução em nosso país" (Samuel Pessoa na FSP, em 05/02/2017).

Nosso economista acredita, portanto, que as alterações propostas para a previdência aumentarão a "poupança", e portanto a "oferta de capital" na economia brasileira. São necessárias apenas algumas semanas na faculdade de economia pra compreender as implicações apontadas pelo articulista para o aumento da "poupança". Basta aplicar o modelo de oferta e demanda ao "mercado de capital". Ao aumentar a "oferta de capital" isto determina imediatamente, dada taxa de juros, um excesso de oferta de capital em relação à demanda. Para alcançar o equilíbrio novamente, segue-se uma queda da taxa de juros. Na medida em que isso ocorre, o investimento aumenta e determina uma acumulação de capital mais rápida que eleva a intensidade de capital da economia. É curioso, entretanto, que estas certezas sejam hoje tão certezas não só para o nosso nobre economista aqui citado, como também para a maioria de seus colegas. Houve um tempo em que elas foram seriamente questionadas. 

"No modelo convencional, sucessivos sacrifícios de consumo e acumulação de bens de capital levam a taxas de juros progressivamente menores. Esta versão neoclássica convencional dos retornos decrescentes é enunciada detalhadamente em meu livro 'Economics'. Infelizmente, antes que o 'reswitching' me alertasse para a complexidade do processo, eu não havia percebido que o raciocínio convencional representa apenas um de dois possíveis resultados. No caso da tecnologia da Figura II, a história pode ser invertida: sacrificar consumo presente e acumular bens de capital poe levar a um novo equilíbrio com uma taxa de juros mais alta!" (Paul Samuelson, 1966, p. 579).

"But, in the conventional model sucessive sacrifices of consumption and accumulations of capital goods lead to lower and lower interest rates. This conventional neoclassical version of diminishing returns is spelled out at lenght in my "Economics". Unfortunately, until reswiching had alert me to the complexity of the process, I had not realized that the conventional account represents only one of the two possible outcomes. When we are in Figure II technology, the story can be reversed: after sacrificing present consumption and acumulatin capital goods, the new steady-state equilibrium can represent a rise in the interest rate!" (Paul Samuelson, 1966, p. 579)

Nessa passagem, Samuelson admite que os mecanismos envolvidos entre o sacrifício do consumo, a acumulação de capital e a queda da taxa de juros são bem mais "complexos" do que o raciocínio neoclássico tradicional sugere. Na verdade, são tão complexos que inviabilizam logicamente o princípio de que cada fator de produção recebe o equivalente à sua produtividade marginal. Haveria muito mais a ser dito a respeito do que tenho energia para dizer agora. Muito já foi escrito e dito sobre esse assunto. Uma das referências mais atuais e completas é esta tese de doutorado do Andrés Lazzarini onde se discute, por exemplo, as deficiências das constatações do próprio Samuelson (1966), que procura minimizar a profundidade daquelas "complexidades" por ele mesmo admitidas.

Ao longo dos anos 1960 e 1970, na medida em que ficava claro que o debate colocava em questão a abordagem neoclássica como um todo, as dificuldades teóricas envolvidas no equilíbrio dos mercados de fatores (requisito inescapável para a determinação do equilíbrio geral) passariam a ser solenemente ignoradas, ao invés de discutidas. Não consta, por exemplo, que o próprio Samuelson tenha modificado seu livro "Economics" depois de perceber que não era bem aquilo que ele havia "enunciado detalhadamente". A determinação neoclássica dos "preços dos fatores" é hoje um tópico precariamente discutido nas faculdades de economia, mesmo a nível de pós-graduação. Tenho plena consciência de que meus esforços como professor de história do pensamento econômico são insignificantes diante desse contexto, ainda que seja bem divertido lidar com o espanto dos alunos e colegas economistas diante dos muitos possíveis desdobramentos daquelas dificuldades.

Mas a parte bem pouco divertida é que as "conclusões" derivadas do raciocínio tradicional seguem sendo tomadas como verdade científica nos "debates" de natureza política como este que se coloca sobre a previdência no Brasil. Ainda que mesmo um neoclássico consagrado como Samuelson tenha demonstrado ceticismo sobre o mecanismo teórico envolvido, os economistas ortodoxos hoje não demonstram nenhum receio ao afirmar que aumentar o "sacrifício" terá como consequência reduzir a taxa de juros no Brasil. E isso por uma simples razão: se não funcionar, inventa-se outra história mais "nova". Ninguém dá bola para estes textos "velhos" mesmo.

Referências

Samuelson. P. Summing up. Quarterly Journal of Economics, 1966, p. 568-583.

Lazzarini, A. Capital theory debates: current relevance of the Cambridge controversies: A historical and analytical overview. Tese de doutorado. Università degli Studi Roma Tre, 2008.

5 de jan. de 2017

Contribuição à crítica do gauchismo metodológico

Um dos trabalhos realizados pela FEE ao longo dos últimos dois anos e considerado importante para um suposto grande prestígio da instituição junto à atual administração estadual foi o documento conhecido como "relatório da dívida". O esforço empreendido naquele trabalho teve por objetivo "analisar, do ponto de vista econômico, os termos do contrato de dívida fruto da renegociação feita junto à União em 1997". A questão é certamente central para os interesses do Rio Grande do Sul, pois a necessidade de transferir recursos à União em nome desse contrato tem sido apontada como uma das questões chaves para as dificuldades de equacionamento das finanças estaduais já há algum tempo.
Buscando sintetizar o argumento central do competente relatório, pode-se dizer que ele explicitava o problema da ausência de sincronia entre o comportamento do indexador estabelecido para o saldo total da dívida (IGP-DI) e o comportamento das receitas do RS, em termos nominais. Mais especificamente, argumenta-se que o IGP-DI é bem mais sensível ao câmbio do que as receitas tributárias do RS, de modo que os termos do contrato estabelecem um risco cambial significativo para a relação receitas/endividamento.
"Esse risco de mercado associado às flutuações cambiais faz com que a capacidade de pagamento dos estados se reduza a partir de condições macroeconômicas que fogem do controle do agente público estadual. Nesse sentido, se a dívida fosse indexada a um nível de preços ao consumidor, como o IPCA, o efeito seria bem menor, uma vez que o preço dos bens de consumo final oscila menos que o preço de commodities e produtos industrializados" (p. 24).
De modo simples: quando o câmbio nominal desvaloriza, este movimento se transfere rápida e fortemente para uma alta do IGP-DI e por esta via, para o saldo devedor do RS junto à União, sem que o mesmo movimento seja observado tão significativa e rapidamente nas receitas tributárias, em termos nominais. Desse modo a taxa de câmbio, uma variável que "foge do controle do agente público estadual" impacta fortemente a sua capacidade de cumprir aquele contrato. A sugestão dos autores do relatório para, senão resolver, ao menos minimizar o problema, seria modificar o indexador estabelecido no contrato, passando a utilizar-se o IPCA para corrigir o saldo devedor, ao invés do IGP-DI.
Avaliando esse diagnóstico e essa sugestão como estando de um modo geral corretos, cabe entretanto refletir sobre uma implicação bem menos explícita desse modo de pensar que embasa o referido relatório. Ela é essencial não só para uma análise mais ampla desta questão específica, como também para as condições estruturais e conjunturais que se apresentam para a economia e a sociedade do Rio Grande do Sul. Note-se que um dos pontos mais importantes da argumentação sintetizada acima, grifado na citação, é o fato de que há variáveis macroeconômicas envolvidas que “fogem do controle do agente público estadual”. Cabe observar, nesse particular, que a sugestão de trocar o indexador do IGP-DI para o IPCA, embora correta do ponto de vista de reduzir o risco cambial, não está relacionada a qualquer aumento do controle das variáveis macroeconômicas envolvidas. Trata-se tão somente de uma adequação dos termos do contrato visando tornar mais sincronizadas as correções do saldo devedor e as variações das receitas estaduais em termos nominais, ainda que o agente público estadual tenha tão pouco controle do IPCA quanto tem do IGP-DI.
Dito isto, cabe inverter o questionamento e perguntar: sobre quais variáveis macroeconômicas relevantes o agente público estadual tem controle significativo? Qual a sua capacidade real de intervenção sobre variáveis como a taxa de inflação, a taxa de crescimento econômico, a produção industrial, a taxa de desemprego, as exportações, as importações? O fato de que, concretamente, todas estas variáveis podem ser mensuradas de modo a retratar o que ocorre dentro do território chamado de Rio Grande do Sul, implica que a sua determinação esteja restrita ao que ocorre dentro desse território?
A resposta para esta última pergunta é obviamente negativa. O governo estadual tem capacidade extremamente limitada para controlar qualquer índice de preços, de produção, de emprego ou de comércio externo. Tais variáveis são determinados predominantemente por circunstâncias exógenas à esfera estadual. Portanto, não são só os termos do contrato de dívida, na forma estabelecida, que estão fora do controle da administração estadual. O funcionamento da economia real também está em enorme medida fora do controle do agente público estadual. Sendo assim, qualquer instituição de pesquisa que tentasse compreender o que ocorre com a economia e a sociedade do Rio Grande do Sul nunca pode partir do pressuposto de que isso possa ser feito sem considerar circunstâncias que são exógenas ao estado. Se é importante que haja um esforço de pesquisa para que o Rio Grande do Sul conheça as especificidades da sua estrutura econômica e social, como tem feito a FEE há 43 anos, isto em nada pode reduzir a importância de interpretá-las com base em uma compreensão correta dos seus principais determinantes, que não tem como ser apenas endógenos, mas também fortemente exógenos. Qualquer investigação que não levasse isso em conta seria extremamente limitada e contribuiria muito pouco para a compreensão da atual realidade econômica do RS e de suas dificuldades. Sinto-me repetitivo ao tratar deste ponto, mas a cada dia se renova a necessidade de voltar a reafirmá-lo. Mesmo aqueles que teimam em desconhecer as limitações da análise econômica por meio dos modelos neoclássicos de “equilíbrio geral” precisam reconhecer que não faz nenhum sentido pensar em termos de um “equilíbrio geral gaúcho”. Nosso glorioso estado é uma peça muito pequena rodando em meio a engrenagens econômicas e políticas muito maiores.