A criação deste blog teve por objetivo divulgar o trabalho do Núcleo de Estudos de Política Econômica (NEPE) da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul. As atividades do NEPE foram encerradas oficialmente em abril de 2018, por força de decreto do governo estadual do Rio Grande do Sul. As opiniões aqui expostas não refletem quaisquer posições oficiais desta instituição ou de qualquer outra, sendo de responsabilidade exclusiva do autor do blog. Neste momento o objetivo é contribuir para a preservação do patrimônio imaterial da FEE, bem como divulgar e avaliar criticamente as análises econômicas realizadas no Rio Grande do Sul.

1 de jun. de 2018

Atividade econômica do RS



Agora que o governo Sartori destruiu o cálculo do PIB do RS, teremos que estimar a atividade econômica de acordo com métodos bem menos científicos, como por exemplo, olhando pela janela e dando um chute. Da minha janela eu vejo por exemplo o belíssimo prédio recém-restaurado que foi sede da Gráfica Rotermund. Foi transformado em um prédio de salas comerciais e lojas. Não entendo nada de arquitetura mas qualquer um vê que foi uma obra realizada com muito cuidado, além de um considerável investimento para os parâmetros deste núcleo urbano. Já faz no mínimo uns três ou quatro meses que o prédio está completamente pronto, mas não vejo salas alugadas. O que isso indica? Que a atividade econômica anda muito fraca, ninguém quer colocar recursos em abrir uma nova loja ou mesmo mudar uma loja existente ou um escritório de profissional liberal para uma localização melhor. Isto me parece um exemplo interessante do que se chama um baixo grau de utilização da capacidade produtiva. Está ocorrendo no momento em praticamente todas as atividades econômicas. No meu exemplo, o belo prédio da gráfica Rotermund é um bem de capital que estará plenamente utilizado somente quando todas as lojas estiverem alugadas. E não me parece, infelizmente, que isto vá ocorrer tão cedo. Os dados preliminares do BR indicam que o PIB do primeiro trimestre foi bem fraco em termos de produção e de emprego. E imagina como deverá ser o do segundo, com no mínimo uma semana já de atividade econômica absolutamente reduzida, em função do problema dos combustíveis. Outro dado que se pode ver da janela é a impressionante redução da intensidade da circulação de veículos e pessoas na rua, pelo menos desde a quarta-feira da semana passada, em função da pane. O centro de São Leopoldo agora de manhã, segunda-feira, parece que ainda é domingo. Este período que começou em 2015 será lembrado por muitos anos como uma enorme e histórica recessão, seguido de um prolongado período de estagnação. Um período em que muitos recursos estão subutilizados, mesmo que muita gente passe por necessidades materiais mas não encontre atividade remunerada que dê jeito. Sabemos há muito tempo que o sistema econômico não é capaz de automaticamente resolver esta questão. Mas, neste momento, o sistema político está perversamente tomado pela crença de que é preciso aumentar a dose de "livre mercado" para que os problemas se resolvam. Não é incomum que, quando o objeto de estudo se torna crescentemente rico, interessante e importante para o cientista social, simultaneamente, são criadas dificuldades cada vez maiores para compreendê-lo. Como no caso de ter de olhar pela janela e farejar a atividade econômica, ao invés de ter o cálculo rigoroso do PIB.

31 de mai. de 2018

Comentário sobre Contas Nacionais Trimestrais em 2018/I

A tabela abaixo mostra a decomposição das taxas de crescimento do PIB, divulgadas ontem pelo IBGE. No geral, acabou sendo um trimestre razoável (acima da minha própria expectativa) ainda que não se possa falar em robusta recuperação, como gostaria a maioria dos economistas e o governo. 


A metodologia para a decomposição das taxas de crescimento do PIB pode ser consultada neste link.

Alguns comentários sobre este último resultado.

1. Segue sendo observada a correspondência entre os melhores resultados do consumo das famílias e alguma reação da formação bruta de capital fixo. Pelo critério dos quatro trimestres acumulados, foi o DÉCIMO-QUINTO trimestre consecutivo de contração dos gastos de investimento, mas agora aproximando-se muito de uma contribuição positiva, dados os últimos resultados trimestrais positivos. Somente a continuidade e a aceleração do crescimento do consumo das famílias pode induzir um desempenho mais robusto do investimento privado.

Trimestre em relação ao imediatamente anterior (com ajuste sazonal)


2. Me surpreende positivamente o resultado do consumo das famílias. Seria ótimo se a expectativa fosse de continuar esse desempenho, mas ainda não vejo razões para acreditar que deva ser melhor do que isso no próximo, tendo em vista a paralisação das últimas semanas, que deverá ter efeito negativo significativo no segundo trimestre. Também não estão claros ainda os efeitos distributivos que vão resultar dos movimentos dos preços dos combustíveis. Como aspecto positivo há que se considerar, para o futuro próximo, prováveis efeitos da liberação de PIS/PASEP, que está sendo anunciada. Deverá ser um efeito semelhante ao da liberação do FGTS do ano passado, mas é provável que não dê tempo de influenciar o segundo trimestre, fique mais para o terceiro.

3. As exportações deram contribuição positiva e bem razoável, nos dados anuais, pequena no trimestre contra o anterior.

4. O consumo do governo segue contribuindo negativamente, em todos os critérios.

5. O coeficiente de importações cresceu em todos os critérios.

Por fim vale lembrar que, antigamente, o IBGE lançava o resultado do Brasil e na semana seguinte a FEE já divulgava os dados relativos ao mesmo trimestre para o Rio Grande do Sul. Nesse momento, depois que o governo Sartori destruiu as contas regionais do RS, já estamos defasados em duas divulgações. Não sabemos o crescimento do PIB do RS em 2017/IV nem em 2018/I. Acredito que não teremos PIB trimestral do RS ao longo de todo o ano de 2018. Com muita sorte, poderemos voltar a ter essas informações em 2019.



11 de mai. de 2018

Os anos 1990 e o reforço ao caráter tradicional da matriz produtiva do RS

Além das estatísticas econômicas e sociais, que são o aspecto mais visível do trabalho da FEE, a instituição também produziu ao longo da sua existência um significativo conjunto de obras de referência para o conhecimento da história econômica e social do Rio Grande do Sul. Uma dessas obras é "Economia gaúcha e reestruturação nos anos 90", organizada por Flávio Fligenspan. De modo semelhante aos outros desses projetos de fôlego empreendidos desde os anos 1970, trata-se de uma coletânea de textos cuidadosamente preparada e articulada pelos pesquisadores buscando o melhor tratamento da totalidade. Cada uma dessas obras tem suas especificidades e a riqueza de interpretações distintas também pode ser um atrativo para a sua leitura e estudo. Mas, uma característica comum a todas elas é a louvável pretensão de, aproximadamente a cada década, documentar os principais processos e eventos que descreveram o período, encaminhando os principais condicionantes para análise da conjuntura subsequente.

Um dos textos publicados no volume que discute os anos 1990 chama-se "Tendências estruturais da indústria gaúcha nos anos 90: sintonias e assimetrias", de autoria de Maria Cristina Passos e Rubens Soares de Lima. Para além de outros aspectos importantes apontados no texto, vale aqui observar a constatação de que os anos 1990 foram marcados por trajetória ascendente de participação das assim chamadas indústrias "tradicionais", incluindo-se nesta categoria tanto a produção de alimentos e bens não duráveis de consumo quanto a indústria de máquinas e implementos agrícolas. Em perspectiva comparada entre o RS e o Brasil, os autores constatam que "o Rio Grande do Sul apresenta uma trajetória até certo ponto peculiar. Não, propriamente, porque as mudanças ocorridas em sua estrutura tenham sido de grande intensidade, embora, na maioria dos casos, estas tenham sido, efetivamente, maiores do que no País, mas, sobretudo pela direção tomada por essas mudanças. Ou seja, ao contrário do que ocorre no Brasil e nos outros estados analisados, a indústria gaúcha é a única a apresentar uma tendência, bastante acentuada, no sentido de uma maior participação dos segmentos aqui definidos como tradicionais. Até mesmo no grupo das Dinâmicas B, no qual há um avanço da participação, isso ocorre com base em uma indústria de larga tradição no Estado, a de máquinas e implementos agrícolas".

Isto reforça, concretamente, a importância de compreender o que se entende por indústria "tradicional" no caso do Rio Grande do Sul, remetendo aos estudos já consagrados sobre a economia do RS. Também são diversos os aspectos importantes dessa discussão mas, gostaria de destacar aqui  fato de que nos anos 1990, muitos anos depois da publicação do estudo conhecido como "25 anos de economia gaúcha", constataram-se reforçados aqueles mesmos dois vínculos externos que definiram a inserção da economia gaúcha no padrão de acumulação nacional de substituição de importações. Naquele estudo da década de 1970 observava-se que "o padrão nacional de acumulação impõe à economia estadual um processo de especialização que se desenvolve simultaneamente por duas vias distintas: de um lado, integrando os estabelecimentos de certos gêneros de indústria de transformação gaúcha diretamente ao núcleo central da economia brasileira e, de outro, articulando algumas unidades industriais à agricultura do Estado". 

Então, a despeito de outras características do sistema produtivo do Rio Grande do Sul bastante alteradas ao longo do período (como a estrutura do capital nas indústrias tradicionais) e que como tal também devem ser compreendidas, não se pode perder de vista um elevado grau de RIGIDEZ que caracterizaram a estrutura dos fluxos de demanda e produção relevantes para a articulação entre a indústria do RS e o Brasil ao longo do tempo. Não obstante os traços da economia brasileira dos anos 1990, período normalmente descrito como de profundas mudanças, a estrutura industrial do RS não só não evoluiu como reforçou a intensidade dos seus vínculos mais tradicionais. Talvez se possa pensar que a redução de participação da produção de bens salários no Brasil ao longo da industrialização se faça normalmente em conjunto com o reforço deste "papel" estrutural do RS de fornecedor deste tipo de produto para o sistema nacional. Uma hipótese a ser trabalhada neste campo de pesquisa extremamente complexo e interessante que é a economia das unidades subnacionais do Brasil ao longo da história.

27 de abr. de 2018

Haavelmo sofre

Nos últimos dias tem ocorrido, nas páginas de grandes jornais, um debate entre famosos economistas sobre política fiscal. Nos artigos se fez referência, explícita ou implicitamente, a respeito do assim chamado "teorema do orçamento equilibrado" de Haavelmo. O resultado fundamental desse teorema, formulado no contexto de um modelo keynesiano em que a produção da economia é determinada pela demanda agregada, ou seja, pelo total dos gastos da economia, é o seguinte: se o governo aumenta os seus gastos e, simultaneamente, aumenta os impostos na mesma magnitude, não só ocorre expansão do produto da economia como também essa expansão é proporcional ao aumento dos gastos públicos. Na linguagem dos economistas o "multiplicador" desta política é igual a 1. Diversos elementos associados a este teorema são pouco compreendidos, mas aqui vou discutir apenas um deles: o que realmente significa aumentar os gastos e os impostos na mesma magnitude.
Nos livros-textos de macroeconomia, é bastante comum apresentar este teorema com base na versão mais simples do modelo keynesiano de determinação da renda, em que tanto os gastos do governo quanto os impostos são completamente autônomos. Entretanto, logo na(s) página(s) seguintes(s), é usual que o texto evolua para a exposição de uma outra versão deste mesmo modelo em que os impostos não são completamente autônomos mas sim induzidos pelo próprio produto/renda da economia. Ou seja, acrescentando-se uma hipótese que aproxima o modelo da ideia empiricamente incontestável de que a arrecadação de impostos varia em proporção direta da atividade econômico. E é bastante usual também apresentar um resultado dessa versão do modelo que mostra que, caso o governo somente aumente os seus gastos, sem fazer absolutamente nada a respeito dos impostos, o efeito automático de elevação da arrecadação fará com que o crescimento do déficit público seja menor do que o aumento inicial do gasto público. Em outras palavras, uma parte do aumento do gasto público se autofinancia pelo efeito expansivo do produto que se traduz em aumento de arrecadação.
Ocorre entretanto, que alguns livros costumam acrescentar a este resultado a observação de que, na estrutura desse modelo ainda simplificado, é impossível que o aumento induzido dos impostos seja grande o suficiente para autofinanciar completamente o aumento inicial do gasto. Nas condições em que se apresentam essas relações este resultado é correto. Mas, voltando ao foco destas linhas, será que este resultado invalida alguma coisa no teorema do orçamento equilibrado? O fato de que um aumento do gasto não seja, sob as condições do modelo, completa e automaticamente financiado por aumento dos impostos, torna menos relevante o teorema do orçamento equilibrado?
A resposta é negativa para as duas perguntas. O teorema do orçamento equilibrado é válido e relevante tanto para o modelo mais simples em que os impostos são autônomos quanto para o modelo com os impostos induzidos. O teorema parte da hipótese de que os impostos serão efetivamente elevados na magnitude necessária para financiar o aumento dos gastos. Nada nesta afirmação requer que esse aumento seja automático. Pelo contrário. O aumento dos impostos completamente financiado pelos gastos pressupõe duas ações de política fiscal: aumentar os gastos e também agir ativamente para que os impostos também sejam elevados na mesma magnitude. No modelo com impostos induzidos, isto significa elevar a alíquota de tributação como proporção da renda. E o resultado final da expansão do produto que decorre do teorema do orçamento equilibrado envolve também uma elevação da carga tributária, ou seja, da proporção entre a arrecadação de impostos e o produto.
Este último ponto é que me parece central para a distorção de compreensão a respeito. O fato de que, por circunstâncias políticas, não se possa nem cogitar em certas rodas de conversa uma elevação da carga tributária acaba levando a um processo de distorção da própria análise sobre o que poderia resultar dessa ação, combinada com aumento dos gastos. Uma elevação dos gastos completamente financiada por impostos resultaria em expansão da produção, sem qualquer efeito sobre a dívida pública em termos absolutos e, portanto, uma redução da importância relativa da dívida pública com relação ao PIB. Para este economista que aqui escreve, somente isto já é suficiente para constatar (ainda que haja outras razões) que a dívida pública não é real restrições para a realização de políticas expansionistas. A política expansionista não pode ser realizada por circunstâncias políticas: deseja-se manter o nível de atividade baixo o suficiente para manter reduzido o poder de barganha dos assalariados e/ou também reduzir a carga tributária seletivamente de modo a promover benefícios localizados.

23 de abr. de 2018

Sobre os canais "entupidos" da política monetária

Entre outras coisas eu e o Bruno Paim escrevemos neste artigo (link abaixo) que "as decisões sobre gastos privados podem ser influenciadas pela política monetária, mas, de modo algum, os condicionantes dessas decisões resumem-se aos efeitos da política monetária que define a taxa básica de juros".


Houve recentemente importante redução dos juros básicos mas bem pouca reação do gasto e do crescimento do PIB. Faz tempo que a gestão da política macroeconômica mostra-se "confiante" que a queda dos juros pode ser o principal vetor de recuperação mas então, por que tanta "demora"? Era prudente, nas condições em que se encontra a conjuntura brasileira, esperar por uma reação maior ou mais rápida? Ou este é só mais um dos otimismos infundados plantados midiaticamente?

A reportagem do Valor Econômico cuja manchete está na imagem ao lado mostra como os supostamente sofisticados analistas econômicos tentam justificar o fato de que o "mais sofisticado modelo de previsão" (utilizado pelo BCB) na verdade prevê muito pouco. Algumas citações da matéria: "Há uma frustração com a recuperação, que está mais lenta que o esperado, o que não representa apenas oscilações" de modo que "pode estar havendo algum entupimento na transmissão dos juros à economia". "Pode ser, porém, apenas uma questão de tempo para os juros funcionarem a plenos pulmões". "Uma reestimativa feita pelo BC em 2015 em um dos mais sofisticados modelos de projeção econômica, o chamado Samba, mostra que o juro já leva de três a quatro trimestres para chegar à atividade". "O próprio BC reconhece que a transmissão da política monetária está sujeita a incertezas e quer mais tempo para analisar seus efeitos. Pela sinalizações feitas recentemente, o Copom pretende fazer uma pausa na baixa de juros a partir de junho para observar os dados - provavelmente por alguns meses - para checar se os estímulos tiveram o efeito desejado ou se foram muito fortes ou muito fracos. Daí, decidirá o que fazer".

"Os juros afetam a economia por diversos caminhos, entre os quais os especialistas costumam destacar o chamado 'canal intertemporal'. Quando o BC corta os juros, o crédito fica mais barato e incentiva as famílias a tomar empréstimos para comprar imóveis e bens duráveis. Juros mais baixos também incentivam empresas a investirem". Um dos economistas consultados admite que "tem alguma coisa estranha acontecendo" mas "não chegou a investigar a fundo o que fez os juros bancários caírem menos do que o esperado e não arrisca nenhum palpite - alguns analistas têm colocado a culpa na alta concentração bancária". Segundo este analista "a falta de reação do crédito teve implicações práticas" e que "o COPOM cortou os juros mais do que esperado neste começo de ano". "Outro canal que alguns economistas acham que está entupido é o dos investimentos".

De algumas semanas para cá, o pseudodebate público evoluiu para a avaliação de uma orientação de política que reduz o depósito compulsório, medida que supostamente reduz o spread dos bancos privados. Aí sim o gasto vai crescer, "confiam"... Mas, se agora os gestores da política monetária e os sofisticados analistas parecem admitir uma importante independência entre o juro básico e o juro ao consumidor, como estavam tão certos de que a queda do juro básico garantiria recuperação do crédito e do gasto, logo ali atrás? E será que podemos assumir a existência de ações concretas para reduzir o spread dos bancos privados? Qual o papel da gestão dos bancos públicos na determinação do spread dos bancos privados? Ele é mais ou menos importante do que os depósitos compulsórios?

Nosso texto não dá todas estas respostas, ainda que com base nele já possamos formular boas hipóteses sobre várias delas. Nosso propósito foi justamente investigar algo que os sofisticados analistas entrevistados pelo Valor agora dizem estar "entupido": o canal de transmissão da taxa básica de juros para o gasto. Tenho certeza que ele responde muito bem ao propósito de contextualizar o interessado no debate corrente sobre efeito dos juros e do spread bancário sobre os gastos e a atividade econômica. Faz isso muito melhor do que podem fazer os jornais de economia. Ao invés de terminar com desculpas e menções auto-elogiosas a "sofisticados métodos" que entretanto falham sistematicamente, nosso artigo encerra com a frase "nessa conjuntura, a redução da taxa de juros resulta algo bem pouco efetivo para uma retomada significativa da atividade econômica", fato que tanto surpreende os mais sofisticados analistas.

Leia o texto completo e entenda um pouco mais sobre o porque.

https://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/view/4034

22 de abr. de 2018

Por uma sociologia dos economistas

Alguns acham que economia é, sem qualquer possibilidade de questionamento, a ciência da escassez. Só se for escassez de clareza a respeito das questões que são brilhantemente discutidas neste livro, por esta dupla de sociólogos. O foco do livro é apresentar as principais questões de interesse da sociologia tomando como objeto os próprios sociólogos, tornando assim explícitos os condicionantes e restrições impostos à sua formação, atuação profissional, etc. O livro todo merece ser lido, por óbvio, mas destaco esta passagem.

"Admitamos o caso objetivo de que uma estrutura social complexa, como a nossa, fosse baseada na exploração e manipulação de alguns grupos no interesse de outros e que um sociólogo publicasse um relato objetivamente verídico da maneira como isso se desenvolveu e persiste, usando, e essa é nossa esperança, os meios que esboçamos neste livro. Essa publicação poderia afetar a consciência social; tenderia a diminuir a falsa consciência, talvez tornando os grupos subordinados mais insatisfeitos com sua posição, despertando a consciência de alguns dos situados nos grupos superiores. Mesmo que realmente não fizesse isso em qualquer grau considerável, alguns poderiam sentir a probabilidade dele ter tal efeito. Por certo, se poderia esperar respostas à análise objetiva; escritas com erudição e inteligência, tentariam mostrar que a análise não era objetiva e sim distorcida. Os autores dessas reações não só estariam errados, mas estariam agindo de má-fé - distorcendo a ciência para fins políticos; contudo, poderiam persuadir o povo. Outros autores, compreendendo que seu processo e segurança na carreira poderiam ser promovidos não ofendendo os grupos dominantes, poderiam apresentar argumentos que desviassem a atenção da análise dizendo que a tarefa da Sociologia deveria ser o estudo de outra coisa, talvez a maneira como a ordem social é mantida, ou dizendo que a Sociologia não possui a técnica para estudar problemas importantes e, por conseguinte, deveria limitar-se a áreas onde se poderiam usar as técnicas disponíveis - estudos de opiniões sobre esportes, ou sobre como as pessoas passam o tempo, etc. Eles poderiam dizer que objetividade significa técnica. Como é que seu estudo pode ser objetivo se você não usa a análise da regressão múltipla, que na realidade é tão requintada? Essas pessoas não só estariam erradas como também seriam covardes. Em nosso exemplo hipotético, vemos o verdadeiro cientista atribulado com pessoas covardes e de má fé que confundem a questão e desviam a mente do estudante da verdade real. Mas na realidade das nossas próprias sociedades, como é que distinguimos entre o verdadeiro sociólogo, o tratante e o covarde? No caso hipotético, admitíamos saber qual era a análise objetiva. Na nossa própria sociedade, como sabemos quem é objetivo, o tratante e o covarde? Os próprios rótulos dependem de sabermos isso, e não o sabemos. Restam-nos as controvérsias que caracterizam a Sociologia hoje em dia; quanto à maneira como julgá-las - nossas opiniões foram o assunto do livro" (p. 124-125).

Quantas vezes já assistimos economistas fugindo para o conforto de assuntos banais? Quantas vezes já se viu economistas tentando desqualificar argumentos logicamente consistentes com base no fato da técnica não ser supostamente a "de ponta"? Quantas vezes já tivemos a impressão de que um determinado argumento não está assim tão bem fundamentado, mas acaba suficiente para condicionar comportamentos que visam preservar determinada situação política e social estabelecida? Quantas vezes os economistas já atuaram visando naturalizar situações de desigualdade? Certa feita, presenciei um economista buscando justificar seu pouco interesse por promover o debate de ideias distintas devido ao fato de que se tratava de algo inócuo, visto que "ninguém vai mesmo mudar de opinião". Não é realmente de admirar que queiram eliminar qualquer janela de pensamento crítico no ensino médio, bem como destruir instituições que ainda preservam espaços de pensamento independente. Poderão assim com ainda mais tranquilidade viver em sua mediocridade conservadora.

10 de abr. de 2018

Recuperação de 2017: copo meio cheio ou meio vazio?

Baseadas nos dados das Contas Nacionais Trimestrais relativos ao último trimestre de 2017, as linhas que se seguem buscam fazer uma breve avaliação sobre o que ocorreu ao longo de todo o ano, destacando especialmente alguns aspectos pouco salientados na repercussão pública dessas informações.

O dado mais enfatizado pelo discurso oficial foi a variação positiva de 1,0% na comparação dos quatro trimestres de 2017 com os quatro anteriores, resultado que contrasta com as expressivas variações negativas registradas nos dois anos anteriores. Por outro lado, pouco ou nenhum destaque foi dado para o resultado do quarto trimestre em relação ao imediatamente anterior, que registrou crescimento de apenas 0,05%. Levando em conta os resultados trimestrais com ajuste sazonal (ver Tabela), a impressão é de uma desaceleração ao longo do ano. O crescimento de 1,3% registrado no primeiro trimestre, interpretado à época pelo Governo como o primeiro passo de uma robusta recuperação, acabou sendo o melhor dos resultados trimestrais de 2017.

Outro aspecto que não recebe qualquer menção no discurso oficial é a avaliação do comportamento conjunto dos componentes da demanda agregada em comparação com o crescimento do PIB. Com base na metodologia de decomposição exposta em Lara (2015), pode-se constatar que a soma das contribuições dos componentes da demanda efetivamente medidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (demanda efetiva confirmada) foi de apenas 0,33%. Isso significa dizer que, daquele 1% de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), calculado pela ótica da produção, apenas 1/3 encontrou contrapartida no lado da demanda. Essa diferença entre o crescimento do PIB e o indicador de demanda efetiva confirmada corresponde à contribuição da variação de estoques, uma medida de quanto do crescimento da produção não foi justificado pelo lado dos gastos, implicando acumulação de estoques. Fenômeno similar havia sido percebido no crescimento do primeiro trimestre do ano (ver Summa, Lara, Serrano, 2017).

Considerando os componentes específicos da demanda efetiva, a segunda maior contribuição positiva foi a das exportações, com 0,58%. Observe-se que a taxa de crescimento anual das exportações (5,18%) foi bastante expressiva no período, mas tal resultado parece apenas corroborar, uma vez mais, dois aspectos importantes já destacados em outras oportunidades nesta Carta de Conjuntura: (a) mesmo com desempenho tão satisfatório, as exportações não podem liderar crescimento significativo na economia brasileira, porque a participação no total da demanda agregada é pequena e os encadeamentos existentes não são fortes o bastante para compensar esse efeito; (b) a performance exportadora dificilmente pode ser explicada pelo comportamento de variáveis de preços relativos (taxa de câmbio real e/ou indicadores de câmbio/salário), uma vez que o biênio 2016-17 foi caracterizado por importante revalorização real do câmbio.

Como já de praxe, retorna-se assim à análise do mercado interno, para compreender a evolução da demanda agregada e do crescimento econômico no caso brasileiro. Nesse aspecto, está o dado mais positivo, ainda que quantitativamente muito pouco animador, de todo o conjunto de informações divulgadas: contribuições positivas do consumo das famílias em todos os trimestres e também no resultado anual. Pela centralidade desse componente na estrutura da demanda agregada, não poderá haver redução dos níveis de ociosidade da capacidade produtiva sem uma robusta recuperação sua. O ritmo ainda tímido dessa retomada é possivelmente a melhor explicação para certa ambiguidade nas informações sobre a formação bruta de capital fixo (FBKF): a contribuição para o crescimento anual foi ainda negativa (pelo quarto ano consecutivo), ao passo que, com exceção do primeiro trimestre, as contribuições desse componente para o crescimento trimestral foram positivas. Esse comportamento dos últimos três trimestres do ano parece consistente com avaliação feita em edição anterior desta publicação (Lara, 2017), quando se observou que, na medida em que ficava claro que o consumo das famílias apresentava alguma reação, “seria mais coerente esperar por um melhor resultado da FBKF, comparado com a previsão que havia sido realizada anteriormente”. Vale apontar que tal compreensão não foi compartilhada pelo Banco Central do Brasil (BCB), que ajustou continuamente para baixo sua estimativa da FBKF ao longo de todo o ano. Em setembro de 2017, a projeção do BCB para a queda dessa variável era de 3,2%. Comparado ao resultado recentemente divulgado pelo IBGE (-1,84%), o desvio foi de 1,4 p.p., bastante significativo para uma previsão com antecipação de apenas três meses.

Conclui-se observando a crescente importância de levar em conta diversificadas fontes de informação e análise para cumprir o objetivo de formar concepção concreta da realidade econômica. Tentando reagir diante dos baixíssimos índices de aprovação popular, a propaganda governamental tem ido muito além da utilização dos canais mais tradicionais. Certas “inovações”, como a intensa utilização de perfil pessoal do Ministro da Fazenda em redes sociais para divulgar informações exclusivamente positivas e otimistas sobre a realidade econômica, foram percebidas em 2017. Diante do evidente viés dessas intervenções, dos enormes erros de previsão dos órgãos “técnicos” oficiais e da postura acrítica de boa parte dos meios de comunicação, mais do que nunca o leitor interessado na conjuntura econômica precisa ampliar o escopo de informações e análises para tirar suas próprias conclusões sobre em que nível, afinal, está o “copo” da recuperação da economia brasileira.

Tabela - Decomposição das taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil — 2017
                                                                                                                                                                                                      


[Texto originalmente preparado para a Carta de Conjuntura da FEE cuja publicação era prevista para 10/04/2018]

11 de mar. de 2018

Entrevista pelo blog Acervo Crítico

AC – O economista e colaborador do blog, David Deccache, tem a seguinte pergunta: Em meados de 2014 a Economia Internacional passou por um momento denominado por alguns economistas como “dupla tempestade”: queda brutal no preço das commodities por um lado e reversão dos fluxos de capital de não residentes (Inflows) para emergentes por outro. Em 2014 o ano também se encerrou com um déficit em transações correntes na ordem de 4,31% em relação ao PIB – patamar muito próximo daqueles que antecederam as crises cambiais e financeiras da década de 1990 e início da de 2000. Isso tudo nos leva a um questionamento imediato: a mudança no cenário internacional em meados de 2014 e a trajetória da conta corrente não poderiam – pelo menos em parte – poderiam ter pelo menos alguma relevância na explicação na grande crise econômica brasileira que se manifesta, principalmente, a partir de 2015? É claro que como o seu trabalho de 2014 aponta, a desdolarização do passivo externo líquido amenizou a nossa crônica vulnerabilidade externa; mas será que a vulnerabilidade externa não se manifestou por intermédio de outros mecanismos?

Sobre a trajetória citada da conta corrente, não me parece ter influência sobre o nível de atividade. Ela poderia ter uma influência indireta, caso não fosse possível financiar o déficit com ingresso de capital externo, aí sim obrigando a adoção de uma política recessiva como a que foi praticada, para rapidamente reverter o déficit. Mas, a não ser em episódios muitos curtos, não houve recentemente escassez de fluxos de capitais que obrigasse essa opção. Ao lado desta constatação, entendo que não apenas a “desdolarização”, mas também o grande volume de reservas sejam aspectos extremamente importantes para uma avaliação sobre as condições externas. E ambos são dados extremamente positivos e que me levam a pensar que os mecanismos tradicionais de restrição às políticas econômicas domésticas simplesmente não operaram no período. Basta ver que instituições multilaterais como o FMI não tem hoje qualquer ingerência formal sobre o Brasil, ainda que isso não signifique que a política econômica não tenha se tornado novamente convergente e/ou subserviente à agenda histórica destas instituições, e aí que está o ponto. Nossa “vulnerabilidade” me parece ter estado na esfera da política, na incapacidade dos setores progressistas de articular uma estratégia de desenvolvimento e uma política econômica funcional para aquela estratégia. Toda a esquerda tornou-se crítica ao curto governo Dilma II mas me parece que ainda há uma visão muito distorcida do que representou o período Dilma I. Ali já se demonstrava de forma muito explícita essa incapacidade que menciono. Mesmo controlando as estruturas do Estado o governo liderado pelo PT foi progressivamente fazendo concessões aos adversários do seu próprio projeto. De repente o “desenvolvimentismo” passou a significar algum controle de preços, contratos de concessão de infra-estrutura para o setor privado e desonerações de impostos. Estimular a produção virou sinônimo de executar a agenda dos setores empresariais. Assim, voltando ao ponto da influência externa, a ideia de que os movimentos externos tenham impacto sobre a demanda efetiva e o produto não podem obviamente ser descartados aprioristicamente mas eu, particularmente, não consigo ver quais os mecanismos de transmissão que possam explicar a intensidade da recessão do período recente. Os setores produtores de commodities são centrais para as exportações brasileiras mas estas representam um percentual pequeno da demanda agregada, de modo que seria preciso explicitar quais canais indiretos de transmissão entre os preços internacionais de commodities e a demanda efetiva doméstica teriam determinado tal contração. Alguns cogitam a influência das condições de liquidez internacional e/ou preços de commodities sobre preços de ativos domésticos e destes sobre as condições domésticas de crédito, mas acho que ainda é preciso bem mais investigação a respeito a ponto de explicitar a existência ou não desta transmissão. Na minha opinião, é mais promissora uma linha de investigação que avance com maior detalhamento sobre por que e como a partir do final de 2014 a política econômica doméstica acabou atuando em sentido pró-cíclico com a recessão já em curso e sem os elementos agudos de restrição externa, conforme comentado acima. E essa questão se subdivide em ao menos duas. A primeira diz respeito a explicitar o mecanismo econômico pelo qual a política econômica efetivamente impacta a demanda efetiva e o produto. Infelizmente, a maior parte da análise econômica veiculada na grande mídia é extremamente deficiente e não se detém nos aspectos importantes. Há uma tendência grande de subestimar alguns efeitos reais da política econômica, sobretudo a política fiscal, como determinante da demanda efetiva e do nível de atividade. Ao invés de concentrar a atenção nos reais impactos das políticas sobre a demanda agregada, o foco tem sido em aspectos subjetivos e até diria um tanto místicos como a recuperação da “confiança”. A segunda questão associada diz respeito aos movimentos políticos que levaram um governo eleito com uma plataforma progressista a adotar com tanta intensidade uma agenda completamente oposta ao que havia sido veiculado na campanha eleitoral. Isto passa necessariamente por compreender o aumento de influência de certos grupos de pressão em detrimento de outros, nas disputas internas ao governo petista. Como referi acima, é um processo que começa ainda antes, durante o primeiro mandato, mas posso ilustrar a questão com o emblemático episódio da nomeação do Ministro Joaquim Levy. Ao tomar essa decisão e conceder carta branca para que o ministro executasse um pesadíssimo ajuste fiscal, será que a Presidenta Dilma avaliava que isto não teria maiores consequências negativas sobre as condições econômicas? Não me parece. Me parece mais plausível imaginar que esperasse de algum modo tirar proveito daquela opção, conquistando apoio de setores conservadores, talvez avaliando que os custos não seriam tão pesados. Dado que tais consequências foram tão fortes que acabaram contribuindo para o próprio fim melancólico do governo eleito, é natural que tais ações acabam sendo interpretadas como “erros” pelo lado perdedor, mas me parece muito mais interessante indagar exatamente para quem toda esta dinâmica constitui-se em “acerto”? Ou seja, quem são os beneficiados por tudo que ocorreu? Quem, mais exatamente, pressionava o governo? O que teria ocorrido, caso houvesse resistência? São forças externas, internacionais, ou internas? Enfim, estou longe de ser o mais qualificado para discutir estas questões. Mas elas me interessam como parte importante da resposta para a questão aqui colocada. De um modo geral entendo que a performance macroeconômica e as condições da primeira década dos anos 2000 induziram uma dinâmica inclusiva que, nos anos iniciais da década que começa em 2010, “assustaram” em alguma medida segmentos detentores de grande poder econômico no Brasil. E a reação foi bastante contundente, estamos assistindo até hoje.

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