A criação deste blog teve por objetivo divulgar o trabalho do Núcleo de Estudos de Política Econômica (NEPE) da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul. As atividades do NEPE foram encerradas oficialmente em abril de 2018, por força de decreto do governo estadual do Rio Grande do Sul. As opiniões aqui expostas não refletem quaisquer posições oficiais desta instituição ou de qualquer outra, sendo de responsabilidade exclusiva do autor do blog. Neste momento o objetivo é contribuir para a preservação do patrimônio imaterial da FEE, bem como divulgar e avaliar criticamente as análises econômicas realizadas no Rio Grande do Sul.

1 de nov. de 2011

Marx, Sraffa e a abordagem clássica do excedente

Não tenho dúvidas em me associar aos que comemoram o renovado interesse pela obra de Marx em tempos recentes. Diante dos rumos que tomou a discussão no evento promovido pela FEE na semana passada (mais uma vez organizado pelo Carlos Winckler) e do relato publicado pelo site Sul 21, penso ser importante entretanto fazer algumas observações.
1. De fato observa-se hoje uma relativa descrença em relação à abordagem ortodoxa em economia. Se isto vai acabar por reduzir significativamente a sua influência nos campos político e acadêmico, é uma questão totalmente aberta. De qualquer modo, penso que seria um erro substituir a abordagem neoclássica ortodoxa pela concepção de que tudo pode ser compreendido a partir de Marx. O relato do Sul 21 sobre a exposição do Prof. Eduardo Maldonado passa a idéia de que Marx seja imune a toda e qualquer crítica que já tenha sido feita. Isto é, no meu entendimento, um enorme exagero, especialmente quando se compreende Marx como um dos autores que contribuíram para a abordagem clássica do excedente, um campo de investigação que vem evoluindo ao longo de vários séculos por meio do debate, e desse modo a partir das críticas e contribuições de seus protagonistas.
2. É verdade que a publicação do livro "Produção de mercadorias por meio de mercadorias" de Sraffa em 1960 foi recebida com grande antipatia entre os marxistas. Penso que isto ocorreu porque a contribuição de Sraffa mostrou que um esquema teórico para os preços e a distribuição do excedente poderia ser estabelecido de modo logicamente coerente sem a necessidade de recorrer à teoria do valor-trabalho. Em termos gerais, dadas as condições técnicas de produção e a taxa de lucro, ficam determinados simultaneamente os preços relativos e o salário real. Sraffa mostrou ainda que, para dadas condições técnicas, há uma relação inversa entre a taxa de lucro e o salário real, configurando portanto um conflito distributivo pela apropriação do excedente. Os preços de produção, assim determinados, modificam-se a qualquer alteração distributiva e são, em geral, diferentes dos custos de produção relativos medidos em quantidades de trabalho, razão pela qual alguns autores passariam a afirmar que a teoria do valor de Marx seria logicamente inconsistente.
3. O fato, porém, de que a teoria do valor-trabalho não fornece uma medida exata dos preços de produção conforme o esquema definido por Sraffa não significa que não há nada para se aprender em Marx. Este tem um lugar de destaque entre os economistas políticos clássicos, por diversos motivos, dentre os quais seu esforço de recuperação da abordagem clássica do excedente, publicado em "Teorias da mais-valia", bem como sua ruptura com a "Lei de Say" ao considerar que na economia monetária o fluxo renda-gastos não se efetiva automaticamente, abrindo assim a "possibilidade das crises". A idéia, posteriormente desenvolvida por Kalecki, de que a dinâmica dos gastos capitalistas é fundamental para a demanda efetiva e portanto para o crescimento e as flutuações do produto tem origem nesta contribuição de Marx. Mesmo no contexto da teoria do valor e distribuição, o tratamento dado por Garegnani (1984) às formulações de Marx em nada levam a pensar que elas não sejam importantes. Ainda que mostre a referida incompatibilidade entre os custos medidos em quantidade de trabalho e os preços de produção, Garegnani busca mostrar como o procedimento de Marx pode ajudar a compreender a natureza deste problema teórico. De uma forma geral, a recuperação do princípio do excedente não invalida a idéia de exploração da força de trabalho, na medida em que concebe que a distribuição do excedente está sujeita à força relativa dos interesses de classe. Uma mudança distributiva em favor do capital pode ser interpretada como aumento do grau de exploração da força de trabalho.
4. Outro ponto que merece um esclarecimento diz respeito à crítica, mencionada pelo Prof. Maurício Coutinho, que afirma que no livro Sraffa não se trata de aspectos monetários, sendo esta uma limitação deste na relação com Marx. Ocorre que Sraffa buscava expor essencialmente as propriedades do assim chamado "núcleo" da abordagem do excedente (ver Garegnani, 1984). O fato de que neste núcleo não necessariamente estejam desenvolvidos aspectos monetários não quer dizer em absoluto que haja qualquer incompatibilidade entre a determinação da distribuição e preços relativos ali desenvolvida com as idéias mais promissoras em termos de representação dos sistemas monetários. A idéia de que a taxa de juros seja o instrumento essencial da política monetária (assumindo assim que quantidade de moeda seja endógena, ajustando-se às necessidades da circulação) tem sido inclusive discutida em termos da influência  da autoridade monetária na determinação da taxa de lucro (ver por exemplo Lara, 2004, e Lara, 2008).
5. Por fim, um último comentário que me parece essencial. Penso que o Prof. Maldonado comete uma enorme injustiça ao sugerir que o programa de pesquisa originado em Sraffa (1960) concentre seus esforços apenas em apontar inconsistências lógicas em Marx, e que os pesquisadores hoje envolvidos ainda sejam os mesmos da década de 1970. Há diversos pesquisadores trabalhando na agenda de pesquisa estabelecida por Garegnani (1978/1979) visando compatibilizar no plano teórico o princípio da demanda efetiva e a abordagem clássica do valor e distribuição, bem como utilizar este quadro teórico na interpretação dos fenômenos econômicos concretos. Muitos trabalhos recentes podem ser acessados na página da Conferência Internacional Sraffa realizada em 2010, no site da Revista Circus sediada em Buenos Aires e na página do Prof. Franklin Serrano da UFRJ. Em minha forma de ver, os resultados deste programa de pesquisa são muito promissores, e têm permitido não só explicitar cada vez mais as deficiências da abordagem ortodoxa quanto contribuir de forma positiva para a interpretação dos processos de desenvolvimento econômico e a formulação de diretrizes de política econômica orientada para o desenvolvimento econômico. Uma excelente referência, bastante didática, para interessados nesta abordagem é o artigo "O desenvolvimento econômico e a abordagem clássica do excedente" de Franklin Serrano e Carlos Medeiros.

26 de out. de 2011

Boletins de Conjuntura da UFFRJ e da FEE

Já está disponível a terceira edição do Boletim de Conjuntura da UFFRJ. Na apresentação, o boletim chama a atenção para o fato de que as estimativas de crescimento da economia brasileira vêm sendo corrigidas para baixo, de modo consistente com a desaceleração de fato registrada pelas contas nacionais trimestrais.
Na seção sobre o setor público, observa-se que a redução de gastos proposta pelo governo não se confirmou, na medida em que as despesas totais seguem crescendo. Observando, entretanto, as contas nacionais trimestrais pode-se ver também que desde o quarto trimestre de 2010 a contribuição do setor público para o crescimento da demanda agregada vem sendo bem menor. Parece provável, portanto, que a política fiscal esteja contribuindo, em conjunto com a retração do investimento e das exportações, para as menores taxas de crescimento observadas. As despesas de consumo, por outro lado, é que não parecem apresentar a  mesma tendência de desaceleração.
Na análise do boletim a respeito das contas nacionais, observa-se ainda que prossegue a tendência de redução da participação da indústria de transformação na geração do valor adicionado, bem como de maior dinamismo da indústria extrativa.
Sobre a política monetária, transparece no boletim a avaliação posítiva a respeito da decisão do Banco Central de reduzir a taxa básica de juros mesmo contrariando as expectativas do mercado e assumindo assim uma postura mais independente em relação aos interesses das instituições financeiras. Na seção sobre a taxa de câmbio, o boletim aponta que não se pode atribuir àquela decisão do BC a recente volatilidade do preço do dólar em moeda doméstica. A oscilação observada está relacionada fundamentalmente ao agravamento da crise na Europa, que determinou movimento semelhante nas taxas de câmbio de diversos países. A evolução deste quadro no futuro próximo dependerá, portanto, dos desdobramentos desta crise.
Supondo, entretanto, que a economia internacional esteja passando por um período de turbulência semelhante ao que se seguiu ao episódio de 2008, penso que as decisões futuras do Banco Central poderão condicionar em grande medida a rapidez e a intensidade da revalorização do câmbio nominal. Se o diferencial de juros tivesse sido substancialmente reduzido a partir daquele episódio, é possível pensar que o câmbio nominal não teria retornado com tanta rapidez ao patamar anterior, em torno de R$ 1,60.
Com respeito às condições do setor externo, o boletim reafirma que o dinamismo das exportações tem estado relacionado essencialmente à evolução dos preços, e não das quantidades. Na última edição da Carta de Conjuntura da FEE observei que, a despeito deste dinamismo, o indicador de solvência externa vem deteriorando-se nos últimos anos. Observando os dados mais recentes do balanço de pagamentos (até setembro) é possível observar que esta deterioração não prosseguiu ao longo do ano de 2011, fato coerente com as taxas de crescimento mais reduzidas. Convém, entretanto, acompanhar de perto a evolução dos preços das commodities no futuro próximo pois, mesmo com um crescimento econômico menor, uma modificação importante nos termos de troca poderá voltar a determinar deterioração das condições de solvência externa.

24 de out. de 2011

Argentina

A esmagadora vitória eleitoral de Cristina Kirchner é um acontecimento fundamental para os rumos daquele país e do continente latino-americano. Assim como a vitória de Dilma Rousseff no Brasil, muito do resultado está relacionado à boa performance macroeconômica. Há entretanto, importantes diferenças entre Argentina e Brasil. Em termos gerais, a Argentina obteve taxas de crescimento bem superiores ao Brasil na última década, ao mesmo tempo em que registrou taxas de inflação mais elevadas. Pretendo em breve aprofundar esta comparação. Por ora, divulgo um texto de Mark Weisbrot e outros sobre a performance recente da Argentina. Os autores buscam mostrar que os resultados da economia argentina não podem ser atribuídos simplesmente aos elevados preços de commodities, embora estes obviamente façam parte da explicação, como no caso brasileiro. Enfatizam que o governo argentino adotou uma estratégia correta de não sacrificar o crescimento econômico em nome da luta contra a inflação, conseguindo por esta via uma significativa melhoria dos indicadores sociais. Isto não quer dizer, todavia, que a inflação não seja um problema, na medida em que causa valorização do câmbio real e redução de competitividade. Este será, sem dúvida, um importante desafio de Cristina Kirchner em seu novo mandato. Por fim, os autores salientam que a experiência argentina precisa ser analisada com atenção pelos países em dificuldades na zona do Euro, na medida em que as dificuldades de obter financiamento externo não foram obstáculo para uma excelente performance, após um curto período de recessão posterior ao default em 2001.

19 de out. de 2011

Garegnani (1930-2011)

Faleceu na última sexta-feira um dos mais importantes economistas do século XX. Pierangelo Garegnani foi fundamental no debate teórico que trouxe à tona as inconsistências da teoria marginalista da distribuição nos anos 1960. Sua contribuição para a retomada da abordagem clássica do excedente também foi decisiva. Seu artigo "Notes on consumption, investment and effective demand" publicado em duas partes no Cambridge Journal of Economics entre 1978 e 1979 expõe a base para a agenda de pesquisa visando a integração entre a teoria clássica do valor e distribuição (recuperada a partir do livro Sraffa de 1960) e o princípio da demanda efetiva (amplamente difundido pelas contribuições de Keynes e Kalecki). Uma parte muito pequena da obra de Garegnani encontra-se traduzida para o português. Aqueles que se interessam pela sua abordagem podem, entretanto, começar a conhecê-la a partir da produção do Prof. Franklin Serrano. A respeito do papel da demanda efetiva no crescimento econômico, de modo consistente com a abordagem clássica para distribuição e preços relativos, recomendo especialmente o artigo "Acumulação e gasto improdutivo na economia do desenvolvimento".

8 de set. de 2011

Mudança de rumo?

De fato, a decisão do BC de reduzir a taxa básica de juros em meio ponto contrariou (pela primeira vez em anos de funcionamento do regime de metas de inflação) as expectativas do mercado. A aposta geral era de manutenção do nível da taxa de juros, tendo havido inclusive dois votos no COPOM a favor desta opção. Cinco votos foram favoráveis à redução de meio ponto. Segundo as informações disponíveis, a reunião teria sido uma das mais longas já realizadas sob o atual regime. A divisão dos votos e as quatro horas de discussão parecem de fato indicar, agora sim, que algo pode estar mudando.

O contra-ataque via imprensa foi imediato. Os críticos mais incisivos acreditam que com esta decisão o BC jogou a meta de inflação para o alto, ou seja, estaria dando uma demonstração de que já não se preocupa mais com o controle da inflação. Outros afirmam que o BC cedeu a pressões da Presidência da República e Ministério da Fazendo, tendo passado a preocupar-se não só com a inflação mas também com o crescimento do PIB. Recomendo esta interessante análise a respeito da cobertura da imprensa a respeito da decisão. Reproduzo um trecho abaixo:

"Este é, exatamente, o ponto central da polêmica: afinal, a serviço de quem estão os articulistas, comentaristas, analistas, colunistas e demais proprietários de fatias da mídia que, em coro, trataram de desmoralizar o Banco Central? Que interesses representam, e por que motivo contam com tanto espaço nos jornais? Além do evidente complexo de vira-latas, não há como ignorar que o insistente viés político que contamina o noticiário econômico pode estar a serviço de algum interesse nebuloso" (Luciano Martins Costa no site do "Observatório da Imprensa")

Buscando analisar objetivamente a questão, penso que é preciso esperar para ver se de reduções futuras da taxa básica de juros serão significativas o bastante para diminuir substancialmente e permanentemente o diferencial entre a taxa doméstica e as taxas internacionais. Se isto ocorrer, junto com os outros mecanismos de taxação e controle da entrada de capitais já em implantação, então poderemos ter uma contenção mais efetiva da tendência de valorização do câmbio nominal. 

Ocorre que, a depender da evolução dos preços das commodities internacionais, isto poderá sim ampliar as pressões inflacionárias domésticas. Neste caso, outras medidas anti-inflacionárias como a desindexação de preços administrados, teriam de ser adotadas. Não acredito que uma política fiscal mais restritiva possa cumprir esse papel, pois entendo que as pressões de custos são mais importantes do que as de demanda. Por outro lado, e este é o lado positivo, uma maior resistência à tendência de valorização cambial poderá interromper ou ao menos amenizar as tendências de reprimarização das exportações e de redução das parcelas da indústria no emprego e na produção.

12 de ago. de 2011

Entrevista

Muito boa a entrevista do economista Carlos Pinkusfeld Bastos para a Folha. Reproduzo abaixo alguns trechos.
"Pessoalmente sempre olhei com maior cuidado a situação da Europa que a dos EUA. Havia, e há, zero possibilidade de default dos EUA. Como disse Alan Greenspan, ex-presidente do Fed, o banco central americano: ninguém dá calote na própria moeda porque pode imprimi-la".
"Aqui se acusa muito os EUA de inundar o mundo de dólares. Mas se esquece que o Banco Central americano tem, ao lado da meta de conter a inflação, a missão de estimular o crescimento. Se não fizesse o quantitative easing (relaxamento monetário), o Fed estaria indo contra sua missão. Não podemos pedir: não faça isso por que o meu câmbio vai valorizar".
"No Brasil, há a questão complicada do câmbio e a composição das exportações, muito baseadas nas commodities, e o desempenho de setores industriais mais dinâmicos tecnologicamente, que deixa a desejar. Se houver uma desaceleração mundial e o preço das commodities cair, certamente piora a situação externa. Como os juros estão baixos nos EUA, compensa o nosso balanço de pagamentos pela entrada de dinheiro aqui. Ou seja, isso é diferente de uma situação de grave restrição externa como ocorreu nos anos 1980"
"Em médio e longo prazo, parece que nós chegamos no limite, em termos do que pode contribuir para o desenvolvimento nacional, da política econômica recente, na qual o câmbio foi usado para frear a inflação enquanto se aumentava o salário real, crédito, a transferência de renda para os mais pobres e se afrouxou um pouco a política fiscal"
"É claro que isso proporcionou um desempenho melhor da economia quando comparado ao período anterior, mas o desafio agora é pensar novos caminhos tanto macro como microeconômicos -ligados a estrutura produtiva, inovação tecnológica, políticas setoriais, infraestrutura --que garantam uma trajetória de crescimento mais sustentado num cenário internacional que não se desenha, pelo lado do crescimento das economias mais desenvolvidas, dos mais favoráveis".

4 de ago. de 2011

Sobre o teto da dívida

Sai amanhã no Jornal do Comércio este breve artigo que reproduzo aqui, a respeito do acordo estabelecido esta semana no congresso norte-americano. Pela falta de espaço, não pude explorar as importantes diferenças que existem entre os agentes privados e os governos, mesmo dos países periféricos. Os tesouros nacionais e as autoridades monetárias desfrutam do mesmo privilégio que os Estados Unidos, de não terem risco de default, porém restritos à sua própria moeda. Feita esta ressalva acho que consegui passar a mensagem.

As melhores análises que li sobre este mesmo tema foram os artigos de Delfim Neto e de Mark Weisbrot. O primeiro apresenta números que mostram a irrelevância da discussão do ponto de vista da demanda pelos títulos norte-americanos.

"A demanda global dos papéis de vencimento em 30 dias, com relação ao nível de corte do Fed, foi de 5,3 vezes (para cada US$ 1 bilhão vendidos apresentaram-se potenciais compradores de US$ 5,3 bilhões). Nas quatro semanas de julho o Fed vendeu US$ 102 bilhões de papéis com vencimento de 30 dias. As demandas sempre foram mais do que 4,5 vezes o montante vendido, com taxa de juro media inferior a 0,06%. No mesmo mês, o Fed colocou mais de US$ 330 bilhões de papéis com vencimentos entre 30 e 720 dias (contra uma demanda superior a US$ 1,2 trilhão) com suas respectivas taxas de juros praticamente inalteradas. Esses números não parecem revelar qualquer angústia maior do "mercado" da dívida pública com a possibilidade de um 'default'" (Delfim Neto no Jornal Valor em 02 de agosto).

Já a artigo do Weisbrot pode ser acessado por este link.

O teto da dívida norte-americana e a assimetria no sistema monetário internacional

O recente debate no Congresso norte-americano sobre o aumento do teto da dívida desse país permite observar-se uma importante característica do sistema monetário internacional vigente: a assimetria que caracteriza a posição dos Estados Unidos frente a todos os demais países. Como bem sabe o leitor, qualquer agente econômico que tenha um estoque de dívida em crescimento precisa contar com a concordância de seus credores para refinanciar seus débitos, ou, alternativamente, encontrar novos credores dispostos a conceder-lhe novos empréstimos. Ainda que, em determinados casos, as discussões “domésticas” (no interior de uma família, de uma empresa ou mesmo de uma nação, como no caso do Congresso norte-americano) possam ser importantes, a decisão de aumentar o estoque de dívida só será efetivamente posta em prática se houver emprestadores interessados. No caso das dificuldades do Brasil com sua dívida externa nos anos 80, por exemplo, não foram poucas as vezes em que foi necessário recorrer a linhas de crédito do Fundo Monetário Internacional. Os recursos do Fundo eram liberados, entretanto, mediante a imposição de pesadas condicionalidades sobre a gestão da política macroeconômica. Algo semelhante está ocorrendo neste momento com países como a Grécia, fortemente pressionada, por seus credores internacionais, a executar um pesado ajuste recessivo.

No caso norte-americano, entretanto, tal situação não se verifica. A decisão de elevar o teto da dívida foi tomada a partir de um acordo que envolveu atores do cenário político doméstico e ocorreu quando os dois grandes partidos chegaram a um termo comum. Em nenhum momento, houve qualquer preocupação com a existência ou não de interessados em conceder novos empréstimos, nem qualquer análise de condições impostas pelos credores. A aparente obviedade de que só se pode tomar recursos emprestados caso haja concordância do emprestador não se aplica quando o devedor em questão é o Tesouro norte-americano. Isto porque, na atual configuração do sistema monetário internacional, em que o dólar é a moeda inconversível de referência, os títulos da dívida norte-americana são demandados pelos Bancos Centrais de todo o mundo enquanto ativos de reserva. Apesar de os Estados Unidos registrarem, há muitos anos, significativos déficits em transações correntes, seus títulos seguem sendo o ativo de menor risco de todo o sistema, e os referidos déficits externos norte-americanos são automaticamente financiados pelos países superavitários. Nem mesmo o serviço dessa crescente dívida norte-americana constitui grande problema, uma vez que as taxas de juros são próximas a zero em termos nominais.

Essa brutal assimetria entre os Estados Unidos e os demais países no que diz respeito ao ajuste de suas contas externas é, na verdade, um dos reflexos da supremacia econômica e militar daquele país diante do resto do mundo. A quase completa preponderância das forças políticas domésticas para a resolução da questão do teto da dívida não significa, entretanto, que o acordo não vá ter suas consequências para os Estados Unidos e para o mundo. Ao lado do maior espaço de endividamento, ficaram acertados cortes de gastos públicos. É difícil dizer se tais cortes derivam dos sempre influentes diagnósticos ortodoxos ou, simplesmente, do cálculo político dos republicanos. Provavelmente de ambos. De qualquer modo, caso os cortes tornem-se efetivos, será ainda mais difícil para retomar o crescimento econômico nos Estados Unidos. Diante dos elevados níveis de desemprego que vêm sendo registrados após a crise financeira de 2008, tal cenário deverá reduzir as possibilidades de reeleição de Obama.

13 de jul. de 2011

Revista Circus e Marcelo Diamand

Acrescentei aos links o caminho para o blog da Revista Circus, sediada em Buenos Aires. A partir destes dois links é possível acessar um considerável conjunto de boas análises heterodoxas em língua espanhola. Ainda não tive tempo de ler muita coisa mas chamo a atenção para um link que particularmente interessa para a linha de pesquisa que  me propus a executar no NEPE. Nele estão disponíveis diversos trabalhos do economista argentino Marcelo Diamand, inclusive o livro "Doctrinas económicas, desarrollo e independencia: economia para las estructuras produtivas desequilibradas: caso argentino", publicado em 1973. A análise de Diamand acentua sempre a inadequação da doutrina ortodoxa para compreender os fenômenos econômicos da periferia. Estou começando a ler o livro e me parece muito bom. No primeiro capítulo Diamand anuncia seu esquema de análise do padrão stop-and-go da economia argentina como um "processo de divergência entre o crescimento do setor interno consumidor de divisas, que não contribui para produzi-las, e a estagnação relativa das exportações. Esta divergência entre o desenvolvimento interno e a capacidade de gerar divisas dá origem a uma tendência de permanente desequilíbrio do setor externo. Nas estruturas produtivas desequilibradas aparece assim uma insuficiência crônica na produção de divisas que, por seu caráter estrutural, se distingue diametralmente dos desequilíbrios transitórios da balança de pagamentos, característicos dos países industriais" (Diamand, 1973, p. 33). Em outro texto, também disponível no site da Circus, podemos encontrar uma definição sucinta para a estrutura produtiva desequilibrada. "Trata-se de uma estrutura produtiva composta por dois setores com níveis de preços diferentes: o setor primário - agropecuário em nosso caso - que trabalha a preços internacionais, e o setor industrial, que trabalha a um nível de custos e preços consideravelmente superior ao internacional. Esta configuração peculiar, não imaginada pelas gerações dedicadas à elaboração da teoria econômica que hoje se ensina nas universidades, dá lugar a um novo modelo econômico, caracterizado pela crônica limitação que o setor externo exerce sobre o crescimento econômico" (Diamand, 1972, p. 1-2). Com qualificações e adaptações, penso que esta abordagem pode ser muito útil para refletir sobre os desafios atuais do crescimento econômico brasileiro. Setores primário-exportadores de alta competitividade cujos preços estejam em alta nos mercados internacionais não são inviabilizados pelas taxas de câmbio valorizadas. Na medida, porém, em que o setor industrial não só deixa de contribuir para a obtenção de divisas mas torna-se ele mesmo um consumidor de divisas, dada a penetração de bens de capital e intermediários importados, tende a ocorrer uma deterioração das condições externas necessárias para o crescimento econômico prolongado.

4 de jul. de 2011

Boletim de Conjuntura da UFRRJ

Está disponível o segundo número do Boletim de Conjuntura Econômica do Grupo de Pesquisa de Política Econômica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Faço abaixo alguns comentários a respeito da apresentação do boletim, redigida por Leandro Fagundes, e da análise do setor externo, por Roberto Rodrigues.
Em primeiro lugar a posição dos autores converge com a que tenho procurado expor neste espaço, a respeito da continuidade da orientação conservadora do Banco Central, bem como ao efeito desta política sobre a valorização da taxa de câmbio que "deve ser explicada pela manutenção, por parte do governo brasileiro, de um grande diferencial de taxas de juros, que faz o Real se valorizar frente às principais moedas do mundo" (p. 2). Penso que os efeitos sobre as contas externas ficam explicitados pelo boletim tanto no que diz respeito às transações correntes quanto ao movimento de capitais.
No que diz respeito às transações correntes, os autores apontam que o elevado déficit de 2010 tende a ser superado em 2011, devido fundamentalmente aos resultados deficitários em serviços e rendas. O fato de que o resultado do saldo comercial seja positivo e crescente não impede os autores de perceber e apontar que "o crescimento das exportações tem sido puxado principalmente pela variação dos preços e não pela quantidade" (p. 28), enquanto que "o crescimento da quantidade importada foi superior ao crescimento dos preços" (p. 29) no primeiro trimestre de 2011. Desta dinâmica pode-se perceber a dependência que o superávit comercial brasileiro tem em relação aos movimentos dos preços internacionais, na medida em que "nossas exportações se concentram muito mais em produtos primários, ao passo que as nossas importações se concentram em produtos mais industrializados" (p. 29). O crescimento dos preços das exportações em dólar tem, portanto, sido decisivo para o saldo comercial positivo, e o efeito inflacionário deste movimento tem sido contrabalançado pela valorização do câmbio que faz com que os preços não crescam tanto em termos de moeda doméstica.
Ainda que o resultado em transações correntes seja negativo, o Brasil segue aumentando seu volume de reservas tendo um vista o elevado influxo de capitais. O boletim mostra que uma parte muito significativa deste influxo de capital se deve ao diferencial de juros. Mesmo o expressivo saldo positivo da conta investimentos diretos (US$ 27 bilhões no primeiro trimestre de 2011) deve-se em grande parte aos empréstimos intercompanhias (US$ 16 bilhões). Penso que esta lógica financeira das matrizes que tomam crédito no exterior a taxas reduzidas, concedem empréstimos a suas filiais no Brasil, e estas por sua vez tornam-se credoras a taxas elevadas, é um ponto importante que merece ser investigado. Desto modo pode-se aprofundar o debate a respeito da natureza produtiva ou financeira do "investimento direto" no Brasil. Isto porque, de modo semelhante ao que ocorria no período 1994-99, quando setores ligados ao então governo argumentavam que o financiamento com "poupança externa" não era um problema desde que a participação dos investimentos diretos fosse significativa, o mesmo argumento tem aparecido novamente. Com aquela experiência, foi possível aprender que é preciso avaliar se os investimentos diretos são capazes de contribuir ou não para a promoção de exportações a longo prazo.
Neste momento em que boa parte do influxo de capital parece estar orientado pelo diferencial de juros e que a pauta exportadora tem tendência de reprimarização, é preciso atenção redobrada para as condições das finanças internacionais, especialmente porque imagina-se que a evolução dos preços das commodities esteja influenciada por componentes esepculativos. "Embora seja improvável de ocorrer no curto prazo, uma inversão da tendência nos preços internacionais dos minérios e commodities agrícolas traria grande impacto negativo em nosso balanço de pagamentos e na renda nacional" (p. 3).  De fato, mudanças nas condições internacionais em geral e, mais especificamente, na orientação da política monetária norte-americana, poderão influenciar tanto os fluxos de capitais quanto os preços das commodities.  Ao invés de buscar maior proteção frente a estes eventos exógenos, a economia brasileira parece estar evoluindo para uma crescente exposição a estes riscos.

29 de jun. de 2011

Debate entre Chang e Bhagwati

Interessante o debate promovido pela The Economist entre Ha-Joon Chang e Jagdish Bhagwati sobre a importância do setor industrial para o desenvolvimento econômico. Concordo integralmente com o argumento do Chang de que a desindustrialização tem provavelmente um efeito negativo sobre o balanço de pagamentos porque os serviços são inerentemente mais difíceis de exportar. Ele lembra que mesmo serviços que sejam a priori comercializáveis dependem de um setor industrial forte para garantir a competitividade e assim a sua efetiva exportação. Sendo assim, uma vez que o desenvolvimento econômico na periferia depende crucialmente do equacionamento da restrição externa ao crescimento, um processo de desindustrialização tende a tornar a tarefa progressivamente mais difícil.

2 de jun. de 2011

Serrano & Summa sobre política econômica brasileira nos anos 2000

Por uma incrível coincidência, estava lendo uma versão preliminar do artigo de Franklin Serrano e Ricardo Summa, que me foi enviada pelos autores já há alguns meses, quando vejo no twitter que ele acaba de ser disponibilizado na página do CEPR. Aproveito então para fazer alguns breves comentários, visando divulgar este excelente trabalho. Indico também o link para a versão em português, disponível na página do Observatório da Economia Global do CECON da UNICAMP.

Em termos gerais, o artigo mostra que as melhores condições macroeconômicas (em termos de inflação, crescimento e aspectos distributivos) a partir de meados dos anos 2000 no Brasil derivam de uma combinação entre significativas mudanças nas condições externas e, após alguma hesitação, mudanças mais pontuais na orientação da política econômica doméstica. O artigo é muito rico em dados e interpretações. As mudanças das condições externas são mais conhecidas, de modo que concentro minhas observações na avaliação da orientação da política econômica doméstica. No que diz respeito à contenção da inflação, os autores mencionam avanços entre 2004 e 2006 em direção à redução do grau de indexação dos preços monitorados ao IGP-M. Apontam também o importante papel da Petrobrás em manter relativa estabilidade dos preços dos combustíveis diante das elevações do preço do petróleo nos mercados internacionais. Vale lembrar que a interpretação dos autores está baseada essencialmente na idéia de que as pressões inflacionárias são basicamente de custos, e não de demanda, de modo que a trajetória do câmbio nominal tem um papel central na determinação da taxa de inflação, conforme já discutido neste blog em outra oportunidade. No que diz respeito ao crescimento econômico, os autores observam avanços na orientação da política fiscal que, mesmo com a manutenção do superávit primário, passou a exercer um impacto positivo sobre a demanda agregada a partir de 2006, aproveitando as novas condições externas favoráveis. A nova orientação permitiu inclusive, depois de alguma hesitação, uma resposta contra-cíclica à crise mundial de 2008. A melhora dos indicadores distributivos é associada de modo bastante direto à melhora das condições internacionais de comércio e finanças, na medida em que estaria relacionada essencialmente com a apreciação cambial  e com as menores taxas reais de juros. No que diz respeito às tendências futuras, os autores indicam riscos para a continuidade destes, devido ao papel essencial que exerce a apreciação da taxa de câmbio no controle da inflação e tendo em vista o impacto que isto tem sobre a competitividade industrial. A deterioração das transações correntes e a penetração de importações em substituição à produção doméstica de insumos podem levar ao retorno da restrição externa e da dependência de fluxos de capital de curto prazo. Com respeito às alternativas de política para enfrentar estes riscos, aponta-se a necessidade de avançar ainda mais na desindexação das tarifas de serviços públicos privatizados, na redução seletiva da taxação sobre bens importados considerados básicos e no aumento seletivo da carga de impostos sobre as exportações de commodities. Esta última medida ajudaria e prevenir que uma futura desvalorização do câmbio aumentasse ainda mais a lucratividade do setor exportador de commodities, procurando reverter o movimento de especialização da pauta exportadora em curso.

28 de fev. de 2011

Os "25 Anos" sob o ponto de vista da abordagem do excedente

Na última terça-feira, 22 de fevereiro, ocorreu novo encontro para discussão de "25 Anos de Economia Gaúcha", com foco agora no volume III cujo título é "A agricultura do Rio Grande do Sul". Na minha exposição procurei discutir algumas questões teóricas que aparecem no primeiro capítulo do referido volume: (a) a importância da atividade agrícola produtora de alimentos para o processo de acumulação; (b) o conceito clássico de concorrência, fundamentado na mobilidade do capital entre aplicações alternativas; (c) a coexistência de técnicas enquanto fundamento para a existência da renda da terra.
Coloco à disposição uma breve nota com os principais pontos.
Aviso que o próximo encontro ficou marcado para o dia 15 de março, e o foco ainda será volume III.

21 de fev. de 2011

Capacidade produtiva, demanda efetiva e inserção externa

Na palestra do Luciano Coutinho, presidente do BNDES, fiquei com a impressão de que o governo federal vê como desafio maior para a estratégia de crescimento a elevação da taxa de investimento. Foram expostas projeções que indicam expectativa de elevação da taxa de investimento para algo em torno de 25% em 2014. De fato, somente elevando a taxa de investimento é possível manter taxas mais elevadas de crescimento do produto.

O Professor Coutinho não entrou, porém, no assunto taxa de câmbio, resumindo-se a dizer que o câmbio deverá se ajustar em algum momento porque a economia norte-americana está voltando a crescer e a política monetária do FED deverá ser "mais apertada".

Aproveito a oportunidade de discutir estes pontos divulgando um texto de um pesquisador que, a meu ver, tem muita clareza a respeito dos processos de desenvolvimento econômico. Recomendo fortemente este artigo. Adianto que não tenho aqui a mínima pretensão de esgotar o assunto, mas apenas levantar algumas hipóteses e provocar o debate.

"A questão teórica e empírica sobre as conexões entre crescimento econômico e progresso técnico vem ganhando crescente destaque na literatura neoschumpeteriana. Fagerberg (1994) busca relacionar a tecnologia com diferenças nas taxas de crescimento. Muito embora as abordagens centradas no gap tecnológico de inspiração schumpeteriana busquem conectar o processo inovativo (como por exemplo gastos com P&D) com o crescimento do produto per capita, a única relação empiricamente consistente relacionando taxas de crescimento com nível do produto por habitante no início das séries comparativas é a que consideramos anteriormente: o principal mecanismo de catch- up no período coberto entre 1960 e 1980 foi a taxa de acumulação de capital físico. Relações entre gastos com Pesquisa e Desenvolvimento e nível de produtividade são evidentes mas são obviamente não conclusivas. As correlações com taxas de crescimento não são empiricamente consistentes" (Medeiros, 1999)

Portanto os dados sugerem que, se de fato a taxa de investimento aumentar, o país deve mesmo avançar em termos de produtividade e renda per capita, mas isto de modo algum esgota o problema.

"A taxa de investimento é uma questão macroeconômica e estrutural e precisa ser abordada num quadro teórico não convencional. A suposição de que o investimento autônomo inovativo explica em última instância a superior performance das economias asiáticas parece estar presente nas abordagens heterodoxas inspiradas na tradição schumpeteriana. Esta hipótese, no entanto, leva a complexas questões examinadas na teoria do crescimento pós-keynesiana: como foi possível sustentar macroeconomicamente taxas elevadas de investimento compatibilizando os seus efeitos sobre capacidade, demanda efetiva e, especialmente, as restrições do balanço de pagamentos?" (Medeiros, 1999)

A manutenção de elevadas taxas de investimento determina a elevação da capacidade produtiva da economia. Sob este ponto de vista, a manutenção de níveis adequados de utilização da capacidade requer uma evolução consistente da demanda efetiva. Se a demanda e a capacidade não andarem juntas, a taxa de investimento voltará a cair. No caso do Brasil, não se pode esperar que a demanda por exportações cumpra plenamente este papel, razão pela qual o mercado interno precisa seguir crescendo.

Por outro lado, as exportações e o saldo comercial são fundamentais para a questão da restrição externa ao crescimento. Não se pode esquecer que as economias asiáticas, além de elevada taxa de investimento e ganhos de produtividade, avançaram e ainda avançam em meio a um ambiente macroeconômico global. A estratégia de inserção depende fundamentalmente do movimento da taxa e câmbio e da orientação da política industrial, que devem estar coordenados.

"A questão do constrangimento do balanço de pagamentos é estratégica para o desenvolvimento. A conexão desta com a política industrial como a praticada historicamente no Japão e Coréia foi amplamente observada. Ao deslocar a produção para bens com maior taxa de crescimento no mercado mundial e controlar por mecanismos tarifários e não tarifários a propensão a importar, estas economias deslocaram a restrição ao crescimento imposta pelo balanço de pagamentos
viabilizando altas taxas de crescimento. A passagem de um 'regime de demanda' para um regime de 'produtividade', na expressão de Boyer (1995), requer portanto introduzir as instituições e estratégias no cenário do desenvolvimento" (Medeiros, 1999)

Em outras palavras, a restrição externa imposta pelo fato de que as transações internacionais são realizadas em uma moeda que o país não produz precisa então ser examinada sob a ótica de que se poderá ter uma taxa de investimento mais elevada. Quais as implicações específicas de uma taxa de investimento mais elevada para o equacionamento da restrição externa? Bom tema para pesquisa, mas é um tanto óbvio que na medida em que o investimento cresce haverá uma demanda maior por equipamentos e insumos. Mesmo nos casos em que há oferta doméstica destes bens, quanto mais valorizado o câmbio, mais vantajoso é importá-los na comparação com similares nacionais. Ainda que se possa voltar a fazer uma política industrial ativa que coordene estas importações, elas inevitavelmente crescem, e precisam ser acompanhadas de aumento sustentado das exportações. A meu ver isto não é nada simples, e não se pode simplesmente esperar que o câmbio "se ajuste" ali na frente.

Em primeiro lugar porque a desvalorização do câmbio é um importante choque inflacionário, e entra em conflito com o objetivo de estabilidade de preços e manutenção do poder de compra da população. Sem o crescimento real dos salários não será possível manter o crescimento do mercado interno. Os efeitos deste choque poderiam ser reduzidos se fossem revistos os esquemas de indexação pelo IGP-M. O Ministério da Fazenda tocou no assunto há uns tempos atrás depois calou-se novamente a respeito disto.

E em segundo lugar porque de fato digamos que o câmbio possa mesmo "se ajustar ali na frente". Assim como pode se ajustar por si só, porque ele não poderia logo mais voltar a se desajustar também "por si só"? Algo do gênero parece ter ocorrido em 2002-2003. A desvalorização do câmbio naquele momento ajudou a elevar as exportações, turbinadas também pelos movimentos dos preços das commodities. Mas aí, durante os oito anos do governo Lula, vejam só, o câmbio foi desajustando... Mas foi "por si só"? Não, foi uma valorização cambial incentivada pela condução da política monetária, orientada exclusivamente para o objetivo da estabilidade de preços. O fato de que o FED passe a aumentar sua taxa de juros poderá não resultar em reversão da tendência de valorização do câmbio, se o Banco Central do Brasil responder (como sempre fez na gestão anterior) elevando também a taxa de juros de modo a aumentar ou mesmo manter o diferencial entre estas taxas.

Entendo, portanto, que a manutenção do crescimento econômico por um período mais longo não é nada simples. A compatibilização entre os aspectos relativos à taxa de investimento, à evolução da demanda efetiva e à inserção externa de modo algum pode ser obtida sem intervenção coordenada do Estado. É preciso que o BNDES, o BC e o Ministério da Fazenda comecem a conversar mais de perto.

3 de fev. de 2011

Aspectos demográficos

Ocorreu na terça-feira a discussão sobre o volume II dos "25 anos de economia gaúcha". A apresentação ficou por conta do Tomás Fiori e do Vanclei Zanin. Vou retomar alguns pontos da discussão neste espaço. Observo que são as minhas opiniões, sujeitas obviamente à discussão.

Em primeiro lugar é um dado importante a considerar o fato de que, desde os anos 50, a população do Rio Grande do Sul cresce menos do que a população brasileira, e as diferenças são bastante significativas. No período 2000-2010 a população brasileira cresceu 12% e a população do Rio Grande do Sul apenas 5%. Isto é fundamental na medida em que leva a uma progressiva diferenciação da estrutura etária do Estado em relação ao Brasil.

Outro ponto que acho importante observar é que o movimento de maior elevação da taxa de urbanização mais acelerado acorreu no Rio Grande do Sul lá pelo período 1950-1980. Foi também neste período que mais cresceu a participação da região metropolitana de Porto Alegre no total da população do Estado. Além de Porto Alegre, Caxias do Sul também aparece como região de destino do fluxo migratório. Não por acaso, este é também o período de industrialização, conforme discutido com base no volume I.

Com relação a estas mudanças, penso que o volume II já começa a levantar pontos mais específicos e fundamentais, mas não ajuda o leitor a identificar com clareza os nexos econômicos do processo. Por exemplo, o processo de redução da participação do emprego agrícola ocorreu mais por expulsão da população do campo, devido à incorporação de capital e novos métodos na agricultura, ou foi motivado primordialmente pela demanda por trabalho nos setores industrial e de serviços? Claro, provavelmente as duas coisas, mas qual a influência relativa destas duas forças? A meu ver este é um importante ponto da economia do desenvolvimento, que certamente voltará a aparecer na discussão dos volumes III e IV.

O mais interessante da discussão destes textos, a meu ver, é a aplicação dos métodos e técnicas utilizados aos dados recentes, para avaliar novas e antigas questões. No período 1985-95 a taxa de urbanização cresce a ritmo parecido com a participação na renda dos setores urbanos, porém conforme observamos na discussão do volume I já não se observa o processo de aumento da parcela da indústria no valor adicionado. Já de 1995 para a frente a participação na renda dos setores urbanos estagnou mas a urbanização segue, ainda que a ritmo mais lento. A meu ver isto é parte da explicação para a degradação dos centros urbanos que ocorreu com muita força nos anos 90. Um aspecto visível foi o aumento do número de vendedores ambulantes e de outras ocupações precárias como os flanelinhas. A continuidade da migração para as cidades sem a devida contrapartida de criação de empregos formais levou necessariamente a uma maior precarização do trabalho.

São pontos a discutir. De qualquer modo, o seminário segue no dia 22 de fevereiro, com base no volume III relativo à agricultura.

27 de jan. de 2011

Sobre o IOF

Aproveito para colocar um outro artigo que saiu também no Jornal do Comércio em 08/10/2010 a respeito das elevações de IOF sobre capitais externos.

Imposto sobre operações financeiras, diferencial de juros e taxa nominal de câmbio: algumas (rápidas) observações

Diante de nova onda de valorização da moeda doméstica, o governo brasileiro decidiu ampliar o IOF sobre investimentos estrangeiros em renda fixa. Isto constitui um avanço ainda tímido na direção do 'controle de capitais', aumentando a seletividade em relação ao ingresso de capital externo. Seguindo com mais convicção nesta direção, estaremos prevenindo (ou ao menos reduzindo a intensidade) instabilidades súbitas que surgem em função dos fluxos abruptos de saída do capital de curto prazo.
Parece-me porém que a medida terá pouco efeito sobre o movimento do câmbio nominal, caso a sua verdadeira causa não seja atacada. Antes de mais nada, é preciso observar que diversos outros países que adotam o regime de câmbio “flutuante” com liberdade para o movimento de capitais apresentam esta mesma tendência de apreciação cambial. Observando, porém, o período entre 2002 e 2009, verifica-se que o Real está entre as moedas que valorizaram com mais intensidade em relação ao dólar e que, portanto, houve valorização também em relação à maiorias dos países parceiros e concorrentes no comércio internacional.
A pergunta central então parece ser: porque a tendência tem sido relativamente mais forte no Brasil? Penso que isto ocorre porque o Banco Central do Brasil pratica as taxas básicas de juros mais elevadas do mundo, mantendo expressivos diferenciais em relação à taxa básica norte-americana. Com isto, os títulos públicos brasileiros tornam-se altamente atrativos para os investidores internacionais, gerando intensos influxos de divisas internacionais, valorizando assim a moeda brasileira.
É sempre difícil detectar com precisão as causas dos movimentos financeiros de curtíssimo prazo nos mercados cambiais e financeiros globalizados. A pressão dos últimos dias parece decorrer da redução da taxa básica de juros do Banco Central japonês. O mesmo já ocorreu em outras oportunidades, com relação ao Banco Central norte-americano. De uma forma geral, na medida em que as taxas básicas de juros dos países centrais são reduzidas e a taxa básica brasileira é mantida, o diferencial supera a avaliação de risco-país, aumentando a atratividade dos títulos brasileiros e valorizando o câmbio com mais força.
Há tempos que a necessidade de reduzir a taxa de juros vem sendo apontada pelos críticos da política monetária. Sob a inabalável justificativa de manter a taxa de inflação na meta estabelecida, o Banco Central tem ignorado as críticas, mantendo sua orientação extremamente conservadora. Deste modo, os juros altos garantem elevada remuneração básica para a propriedade do capital produtivo e financeiro, enquanto que a pressão de apreciação cambial garante uma taxa de inflação reduzida mesmo quando os preços das commodities internacionais crescem. Em tempos de segundo turno para a eleição presidencial, seria importante que esta questão fosse discutida pelos candidatos.

Entrevista sobre política monetária

Essa entrevista saiu no Jornal do Comércio do dia 21 de janeiro, quase igual ao que aí está. Modifiquei apenas alguns trechos para ficar mais claro. Olhando agora acho que faltou falar algo sobre os esquemas de indexação das tarifas de serviços como energia, comunicações, assim como os aluguéis pelo IGP-M. Fica para uma próxima

CORECON/RS – Como podemos analisar o comportamento do Banco Central nesta primeira reunião do Copom no ano?

Fernando Lara – A postura do BC tem sido a de agir de acordo com a expectativa do mercado. Dificilmente contraria, principalmente quando é para subir. Na minha opinião, a intenção da política monetária é essencialmente colocar a taxa de juros no Brasil acima das praticadas no exterior. Esta medida provoca a entrada do capital, pela remuneração mais alta dos títulos brasileiros, gerando queda do dólar. Este é o mecanismo.

CORECON – Mas vale a pena a medida na relação custo- benefício?

Lara – Acredito que é a queda do dólar, e não a contenção da demanda doméstica, que funciona para conter a inflação – idéia que gera polêmica em relação a outros economistas. Para mim, a inflação recente vem, na verdade, de fora, pela tendência de elevação dos preços dos alimentos no mercado internacional. A valorização do câmbio é uma forma de compensar este aumento externo.

CORECON – Mas por que esta política é contestada por muitos especialistas?

Lara – O problema é que esta política gera uma perda de competitividade das exportações. Seria necessário manter uma taxa de juros mais baixa, com câmbio mais alto. Mas teríamos que relaxar um pouco a meta de inflação. Nas atuais condições o efeito final seria um tanto incerto.

CORECON - A inflação, então, ainda assusta ?

Lara – Sim, mas os fatores, como disse, são mais externos, tem a ver com a demanda mundial por alimentos que está muito forte, elevando os preços e rebatendo aqui. Não é uma inflação doméstica. Mas é preciso destacar que a política para segurar a inflação tem sido um obstáculo para um crescimento econômico mais duradouro, pois as exportações são componente importante para este crescimento.

CORECON – Poderíamos dizer que o BC deveria ser mais atento para outros aspectos comprometidos por esta política monetária?

Lara - É por isso que se diz que o Banco Central é pouco sensível para a questão do crescimento. Ao exercer esta política, ele alega que a missão é manter a inflação dentro da meta, sem levar muito em conta os efeitos sobre outras variáveis como o câmbio, que é supostamente flutuante. Eles costumam “lavar as mãos” em relação a isso, ao dizer que não é responsabilidade do BC.

CORECON – Considerando tuso isso, dá para questionar a chamada autonomia do Banco Central?

Lara – Ela pode ser questionada. Na prática, a instituição tem agido de forma independente, ao valorizar o fato de não sofrer influência política. Mas se agente pensar melhor, o BC pode ser autônomo em relação ao Governo Federal. Mas seria autônomo em relação a outros atores da sociedade? Talvez bem menos autônomo em relação a Federação dos Bancos, que tem influência grande na gestão da entidade. A tal independência em relação ao governo só reforça a dependência que tem em relação a outros setores da economia.

CORECON – Mas a elevação já na primeira reunião do ano tem uma força também simbólica?

Lara – Acredito que a razão deste aumento tem a ver com preocupação de setores da sociedade em relação à inflação registrada no ano passado, que ficou um pouco acima da meta. Foi uma exigência e este meio ponto percentual é significativo. O presidente anterior do BC, Henrique Meirelles, não contrariava as expectativas do mercado. O que resta é saber como será a postura do atual presidente para o futuro.

CORECON – Independente destas relações políticas, dá para dizer que o BC estaria precoupado em manter sob controle uma das principais conquistas da economia: a estabilidade?

Lara – Sim. Mas esta conquista acabou virando um fim em si mesmo. O problema é que se tem exagerado nas doses. É preciso dizer que a nossa política monetária continua sendo uma das mais conservadoras do mundo. E, em termos reais, descontando a inflação, a taxa de juro real do país segue na condição de uma das mais elevadas do planeta.

18 de jan. de 2011

Eu no NEPE

Hoje fui com o Renato Dalmazzo ao NEPE como novo coordenador. Conversei com Carlos Paiva, Enéas e Pedro. No meu primeiro dia de trabalho, saí animado e otimista. Preparem-se para os seminários das quartas-feiras, porque eles serão bons. Ao menos eu farei de tudo para que eles sejam bons (03/03/2011).

Meu otimismo era justificado. Junto com vários colegas, avalio que temos feito um excelente trabalho. (28/12/2016).

Deixei de exercer esta função em 05 de abril de 2018 por força de decreto do governador José Ivo Sartori, que encerrou as atividades da Fundação (07/04/2018).